Passageira à beira de um ataque de nervos

A hora mais temida por Tereza era a fila do check-in. Bem, esse era o segundo pior momento, uma vez que voar para a professora era o sacrifício extremo. Mas, enquanto esperava o momento de ser chamada pela funcionária da companhia aérea, era ali que nasciam os piores pesadelos. Sempre tinha certeza de que seria seu último voo, aquele que selaria seu destino final. Conseguia imaginar os familiares e amigos recebendo a triste notícia de sua morte. Tereza, então, começava a olhar os demais passageiros na espera do calvário. Caras de tédio, quase todo mundo olhando o celular. Estariam mandando mensagens que futuramente seriam interpretadas como despedidas? Será que ela deveria fazer isso? Dizer que ainda amava Jonas? Ou pedir perdão à mãe por ter sido uma filha um tanto quanto relapsa? Um rapaz na fila indiana engatou, com o companheiro da via crucis logo atrás dele, um papo bem humorado, com direito a muitas risadas. Negação da morte vindoura?

A mocinha do balcão finalmente gritou: “próxima”. Era chegada a sua vez. Ela entregou o documento de identidade. Bagagem a despachar? “Não, não, estou indo para São Paulo só para a defesa de uma tese de doutorado, sou a convidada de uma banca examinadora”, respondeu, bastante nervosa, a uma pergunta não feita. A jovem funcionária deu um sorriso que escancarou sua absoluta falta de interesse no motivo da viagem. Tereza se sentiu reprovada na disciplina Diálogos Avançados com Atendentes de Check-in.

A passageira em pânico saiu do balcão e caminhou em direção ao café “de sempre”no aeroporto Santos Dumont. Sentou-se em uma mesinha de canto, um lugar acolhedor entre duas pequenas palmeiras, e pediu uma água com gás. Era chegado o momento de tomar o remédio contra a ansiedade, que a impedia de ter um verdadeiro ataque de nervos almodovariano em voo. Enfiou a mão na bolsa. Que estranho…cadê? Revirou tudo e nada. Uma gota de suor frio escorreu pelas costas da professora. Por não ser principiante no quesito drama, despejou tudo em cima da mesa. Batom, carteira, celular, agenda, chaves, notas fiscais, papéis avulsos. Tereza chegou, então, à mais terrível das constatações: estava sem o remédio. Em um segundo, repassou mentalmente as últimas 12 horas. Tomou uns comprimidos na véspera, para aplacar a insônia e a ansiedade. Acordou em cima da hora de ir ao aeroporto. Tomou um banho apressado e saiu. Sozinha. Acabou esquecendo a milagrosa caixinha em cima do criado-mudo.

 
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E agora? Correr para a farmácia do aeroporto não adiantaria nada. Ninguém seria doido de vender um tarja preta sem receita controlada. Ainda mais para uma mulher esbaforida como ela. Voltar para casa e pegar o remédio não era opção, cruzar a cidade naquela hora da manhã e voltar para o Santos Dumont levaria umas quatro horas. Fazer isso e pegar um voo mais tarde certamente resultaria em um atraso de horas ao compromisso. Ir de ônibus a São Paulo tomaria ainda mais tempo.

Então o terror se abateu sobre Tereza, que deslizou na cadeira do café e soltou um “ai” quase inaudível. Os vizinhos da mesinha ao lado, que sequer notaram a cascata de objetos que saiu da bolsa da professora, continuaram incólumes à dor da professora. Ela então juntou as forças que restavam dentro do diminuto corpo e se levantou. Nem abriu a garrafinha-d’água que a mocinha do café trouxe. Tirou uma nota de R$ 10 da carteira e saiu sem nem esperar o troco. Foi andando em direção ao embarque como uma condenada que caminha para entregar o pescoço ao carrasco.

Quando chegou ao portão, sentou-se na primeira cadeira que viu pela frente e começou a rezar, algo que não fazia desde a infância. “Por favor, por favor, meu Deus, me ilumina”. Na mente, iam desfilando deuses de todas as religiões, Budas, Ganeshas, Orixás... No fim da reza, Tereza levantou a cabeça e pediu uma intervenção divina. Seus olhos foram parar em um rapaz com uma cartela de comprimidos na mão. O olhar clínico da professora logo identificou aquela cor característica, aquele formato tão conhecido. Não restavam dúvidas. Era ele, o remédio salvador.

“Oi, moço, desculpa. Mas você poderia me dar uns quatro comprimidos Meu avião vai cair e não quero estar consciente no momento”. Isso foi tudo que conseguiu dizer. O rapaz, em um misto de surpresa e riso, pediu desculpas, mas não podia ajudar: a milagrosa cápsula era, na verdade, um simples analgésico para dor de cabeça.

Com o rabo escondido entre as trêmulas pernas. Tereza voltou à sua cadeira. Tentou lembrar de exercícios de respiração, mas só a morte em um tubo metálico em chamas chegava à sua cabeça, que a essa altura girava mais rápido que uma turbina. “Vou ligar e cancelar tudo, não tenho condições de viajar sem meu remédio. Vou inventar uma desculpa. Aliás, vou falar a verdade”, pensou.

Tereza não teve tempo de alcançar o celular na bolsa. O som do funcionário anunciando a última chamada para o voo com destino a Congonhas ocupou toda sua mente.

Contrariando seus instintos, ela se levantou. E lá foi Tereza seguindo seu rumo. Entrou quase desfalecendo no avião. Seu corpo parecia pesar duas toneladas, os braços caídos rentes ao tronco, os passos curtos. Olhou para a aeromoça, implorando por ajuda. Recebeu um sorriso inspirador de volta, um pequeno bálsamo frente a tantas desgraças. Tereza, então, sentou em sua cadeira da sorte, a 17C (sempre marcava essa na hora da compra do bilhete; se na hora da reserva ela já estivesse ocupada, preferia buscar outro voo). Recomeçou a rezar, um Pai Nosso, dois, três, quatro. Quando o avião acelerou na pista, Tereza apertou os dentes como se sua mandíbula fosse explodir. E até apertaria mais, mas os dentes precisavam estar intactos para o reconhecimento dos corpos.

O avião decolou e Tereza era uma morta-viva ocupando a 17C. Seu corpo doía, parecia que havia corrido uma maratona inteira. Passou os piores cinquenta minutos de sua vida atenta a cada barulhinho, cada leve mexida no avião. O voo, para sorte de Tereza, ocorreu sem turbulências. Aquelas quedas repentinas no ar eram para a professora a certeza da morte. Sentiu o xixi na bexiga pedindo para sair, mas não teve coragem de ir ao banheiro. O cinto se segurança afivelado era a única coisa que garantia certa sanidade mental naquele momento. Tereza olhava ao redor e via a típica fauna a bordo: executivos de meia-idade com seus relatórios e laptops na mesinha eram a espécie predominante. Morrer de paletó e gravata apertada no pescoço deve ser um horror, pensou.

E foi observando tudo ao redor, como uma criança em sua primeira viagem aérea, que o tempo passou. O pouso até que foi suave. Mas na hora de desembarcar, lá foi Tereza esbaforida, desatando o cinto de segurança antes mesmo do tal aviso luminoso se apagar. Segurando sua bolsa, correu para a porta. Queria ser a primeira a sair dali.

As pernas estavam bambas. No saguão, ainda com o coração em sobressaltos, encontrou facilmente o motorista que a levaria até a universidade, segurando um daqueles típicos papéis com seu nome. “Tereza? Sou o Mauro. Vou te levar até a faculdade. Mas temos de voar. Estamos um pouco atrasados e o trânsito está daquele jeito”.

“Ele falou ‘voar’”, pensou a professora. Péssima escolha de palavras.

No banco de trás do carro guiado por Mauro, Tereza começou a relaxar. Nem ligou para a primeira fechada que o motorista deu em um carro. Agora estava em solo, em segurança. A segunda manobra brusca já não passou tão despercebida assim, até porque foi seguida por um sonoro palavrão por parte do outro motorista. A passageira ensaiou dizer alguma coisa, mas ainda estava tensa demais para articular algum pensamento. Como Mauro conseguia dirigir naquela velocidade em uma via tão cheia de veículos era um mistério para Tereza, que, em sua mente ainda confusa, chegou a pensar no aviso sonoro de “atenção, tripulação, preparar para a decolagem”.

O barulho seco veio do lado esquerdo do carro onde estava Tereza, que rodou duas vezes na pista da marginal Pinheiros. Quando ela levantou a cabeça, viu os veículos desviando do carro onde estava, parado agora na contra-mão do fluxo. Um pequeno caminhão de mudanças não teve o mesmo reflexo e bateu de frente.

Adeus, banca. Alô, emergência?

Dois dias depois, Tereza acordou. Não entendia bem onde, até se dar conta de que estava em um hospital. Com muito custo, conseguiu esticar o braço e apertar o botãozinho vermelho para chamar ajuda. Logo apareceu um médico, que, de modo bastante frio, se apresentou. Renato? Reinaldo? Antônio? Não conseguiu entender o nome do rapaz, que parecia recém-saído da universidade. O moço sem nome definido explicou que ela tinha sido mantida em coma induzido por uns dias, após a retirada de um coágulo do cérebro. A perna também passou por uma cirurgia e foi preciso colocar uns pinos nela.

“Onde estou? No Rio? “.

“Não, Tereza, você ainda está em São Paulo. Entramos em contato com seu plano de saúde e temos a possibilidade de te mandar para casa, quando for o momento certo, de ambulância, com todo o suporte necessário”.

“Deus que me livre, doutor! Me enfiem em um avião!”, disparou Tereza, interrompendo o médico.

O médico já ia saindo do quarto quando a paciente o chamou.

“Doutor, doutor? Antes de ir embora, me consegue uma receita de Rivotril?”.

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