Fantasmas, encontros e desencontros

Sentiu que ia chorar quando colocou o cartão magnético embaixo da maçaneta da porta. Precisou de alguns segundos para se recompor. Antes de entrar, olhou de forma bastante acurada o espaço. Viajou 14h para estar ali. Não no quarto em frente, não no abaixo, não em qualquer outro do luxuoso Hotel Park Hyatt Tokyo. Era uma manhã fria daquele janeiro de 2019 e Marie sentiu uma pequena vertigem ao entrar no espaço que um dia fora cenário para Scarlett Johansson no filme Encontros e Desencontros.

Apoiou a mala no chão.

 
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Exatos 15 anos antes, em uma noite excepcionalmente fria de fevereiro, ela esperava Robert, um paquera arranjado por uma amiga em comum, Pam, do escritório onde Marie, então uma recém-formada em direito, trabalhava. A neve caia forte. Chicago sabia ser cruel com quem esquece o cachecol em casa, o que definitivamente era o caso.

Ainda com as luvas de couro marrom, afundou a mão no edredom branco, imaculado que a camareira havia colocado com esmero.

Robert chegou pontualmente às 18h50, apenas dez minutos antes do começo da sessão. Tempo para as apresentações iniciais, embebidas em um tanto de vergonha típica de primeiros encontros. Não que Marie, uma texana de 24 anos que julgava ser um mix de descolada com tradicional, precisasse da ficha do pretendente. Pam já tinha adiantado tudo: Robert, 29 anos, solteiro após anos de um noivado que deu pra trás por conta da saída do armário da companheira, torcedor do Bulls, amante das artes, cambojano adotado ainda bebê por um casal democrata do Colorado. E não era advogado! Trabalhava em uma agência que facilitava a adoção de órfãos em países em situação de guerra.

Tirou o tênis confortável que só usava nas viagens aéreas e que nunca combinava com as roupas que vestia nos voos. Deitou-se na cama. Deixou-se afundar naquele éden em forma de tecido.

O filme começou e com ele veio aquela tensão natural que se forma entre dois corpos que pouco se conhecem e são obrigados a ficar distantes alguns centímetros um do outro. Uma hora e quarenta e dois minutos depois, com o fim do filme, entreolharam-se e apenas conseguiram dizer: uou. “Amanhã nessa mesma sessão?”, brincou Marie. “Pode estar certa disso”, respondeu Robert, que, coincidentemente, levava o mesmo nome do protagonista do filme: Bob. E foi assim por três dias, até que eles tivessem decorado cada fala, cada movimento de câmera, cada cena. O primeiro beijo dos casal da vida real veio na lanchonete da esquina da rua do cinema, depois da quarta noite consecutiva entregues à história criada por Sofia Coppola.

Marie começou a chorar. Virou de bruços e enfiou a cara no travesseiro, de um alvor quase ultrajante para quem não domina as artes de manter a roupa de cama impecável.

Naturalmente, outros assuntos foram surgindo entre os dois. Os encontros: ambos amavam culinária japonesa, tinham verdadeira adoração por vídeos de gatinhos, possuíam mestrado em insônia — o que rendia horas de conversas e risadas seguidas por manhãs rabugentas e automáticas. Eram gentis um com o outro, com os amigos, com as famílias, mesmo com estranhos. Os desencontros eram muitos, mas facilmente superáveis, esquecíveis como um filme ruim. Ela era super organizada. Ele lutava todos os dias para descobrir onde havia deixado o laptop. Marie adorava beber, de tudo um pouco, ou um muito. Robert ficava alto com meia taça de vinho. Marie gostava de se exercitar, seja academia, pilates ou aulas de lutas marciais. Seu namorado passava longe até das transmissões dos Jogos Olímpicos — a única exceção eram as partidas do Bulls, que seguia religiosamente.

Marie rolou de lado, o rosto morno das lágrimas. Encarou a Tóquio que acordava e começava a se agitar ainda mais, depois de uma madrugada pouco calma, típica de uma metrópole de seu tamanho.

O longo namoro virou noivado, que virou rapidamente um lindo casamento em um sítio distante algumas horas de Chicago na primavera de 2009. Mudaram-se para uma pequena, porém acolhedora, casa no subúrbio da cidade. Não queriam ter filhos. Seriam Marie e Robert. Não “apenas” Marie e Robert, nada do triste “apenas”. Marie e Robert se bastavam.

Marie passou os dedos no carpete perfeitamente limpo e sem manchas do quarto. No anular, a aliança de casamento.

Os anos foram passando. A rotina não era problemas para os dois. As férias eram preenchidas por viagens: Tanzânia, Argentina, mochilão na Europa. Bastava ter uns dias livres no calendário pendurado na cozinha que os dois escapavam, nem que fosse para uma viagem de carro pelos estados vizinhos. Foi em um dia quente do verão de 2016, enquanto esperavam o metrô, que Robert disse: “meu Deus, como não fomos ainda a Tóquio?”. Antes mesmo do trem chegar já tinham pensado em tudo. Iriam dali a três anos, no décimo aniversário de casamento. Ficariam no mesmo hotel onde o filme foi rodado. Fariam questão de reservar os mesmos quartos. O dele e o dela, do casal de protagonistas. Iriam aproveitar ao máximo o hotel, tal qual o roteiro do longa-metragem. Robert iria beber sozinho no bar com vista panorâmica para a capital japonesa, usar a academia e nadar na piscina. Marie faria aula de ikebana, a arte japonesa de arranjos florais. Iriam nos mesmos restaurantes de Encontros e Desencontros, como o Shabu-zen. Cantar no Karaoke-kan e visitar o templo Jogan-ji obviamente estavam nos planos, além de flanar pelo bairro de Shibuya e tentar reconhecer esquinas, placas, letreiros de neon. Chegando em casa, correram para o computador, de modo a deixar tudo já reservado e pago, mesmo com anos de antecedência, para não ter surpresas de última hora. Aproveitaram para comprar no eBay o DVD de A Doce Vida, de Fellini, para verem juntos em uma das muitas madrugadas insones do roteiro da filha de Francis Ford Coppola.

Ela apoiou a mão no chão acarpetado e, reunindo forças que lhe faltavam por conta da dor e do jet lag, levantou-se e foi até o banheiro. Tirou as roupas, dobrou tudo e apoiou o monte organizado na bancada de mármore.

Os anos foram passando ainda mais e algo foi mudando. Não em Marie nem em Robert. Não sabiam explicar. As pequenas viagens foram ficando mais espaçadas. O planejamento da ida ao Japão ficou de lado. Robert e Marie viraram “apenas”. Em uma noite de junho de 2018, ele disse que queria o divórcio. Não havia amantes nem traições. Não houve gritos nem choro. O amor tinha ido embora. Marie aceitou tudo.

Ela então encheu a banheira ao lado da gigantesca janela envidraçada, imergiu o corpo na água quente e, depois de meses, chorou copiosamente pela primeira vez após a saída de Robert de sua vida.

* * *

Depois do banho, Marie abriu a mala e por uns segundos deu uma longa olhada no que havia trazido. Tinham gasto uma pequena fortuna pedindo a uma costureira que reproduzisse fielmente as roupas de Charlotte e Bob. Fechou a mala e deixou em um canto, onde permaneceu por dois dias, tempo que Marie ficou na cama, sem se levantar, sem comer ou beber nada. Sem pregar o olho, como sua personagem no filme. Em uma madrugada, em uma mistura de transe e delírio pela falta de sono e comida, começou a rever mentalmente todo o filme, cena após cena. Só que ela no papel de Scarlett; Robert, no de Bob.

No fim do “filme de sua cabeça”, Marie levantou-se. Olhou a mala aberta mais uma vez, mas decidiu deixá-la de lado e pegar a roupa com a qual viajara de Chicago até ali e que continuava dobrada na bancada do banheiro. Prendeu os cabelos castanhos (que pelos planos de Robert deveriam estar tingidos no mesmo tom de loiro usado por Charlotte) e saiu do quarto. Caminhou pelo corredor deserto (que horas seriam? Duas da manhã? Três? Quatro? Não fazia ideia) e chamou o elevador.

Enquanto esperava, olhou pro lado e pensou no ex-marido. O que estaria fazendo? Estaria acordado, certamente. Será que deveria ligar para dizer “oi, segui nosso plano e você seguiu sua vida”?

O elevador chegou. Ela entrou na reluzente cabine. Marie não tinha a mínima ideia para onde queria ir. Começou a olhar atentamente o painel e viu que cada botão era acompanhado por uma plaquinha indicando, em inglês e japonês, o que o visitante iria encontrar em cada andar.

Bar.

O elevador subiu em uma velocidade absurdamente rápida e antes que Marie pudesse avaliar se era acertada a decisão de ir para o exato local onde Charlotte e Bob se conheciam no filme, as portas abriram-se e o grande salão, que estava vazio (salvo pelo barman e uma mesa com um homem solitário) descortinou-se para Marie. Ela titubeou, mas, quando a porta estava já fechando, Marie botou a mão para impedir o fechamento e deu um passo incerto para frente.

Ela andou pelo salão, que estava frio demais para uma pessoa usando apenas uma camiseta de alças e uma calça jeans. Buscou a cadeira no bar mais afastada possível do outro cliente da noite. O barman aproximou-se e, em um inglês correto, perguntou o que ela gostaria de beber. Marie pediu um uísque. A bebida de Bob. “Duplo, por favor, senhor Nakamura”, disse, depois de ler o sobrenome do funcionário em uma elegante placa dourada e brilhante presa à camisa branca.

Ele voltou com um copo e um guardanapo de linho e colocou ambos em frente à hóspede. Marie pegou o copo, olhou como se fosse um objeto muito estranho e o levou à boca. Assim que a bebida forte encontrou os lábios da americana, a segunda crise de choro veio, ainda mais forte, abafada rapidamente pelo guardanapo.

E assim foi por dois intermináveis minutos. O cliente solitário olhou de soslaio, mas não esboçou nenhuma reação. Nakamura, como quem quisesse dar espaço e privacidade à ocasião, se afastou. Marie respirou fundo, olhou para o alto e enxugou as maçãs do rosto molhadas com o fino pano. Olhou para Nakamura, que parecia vacilar. Ele, por fim, aproximou-se de Marie.

– Posso ajudar em algo?

– Depende. Você tem dez minutos?

E Marie contou sua história para o desconhecido, que não tinha “idade para ser seu pai”, mas os cabelos grisalhos e algumas poucas marcas de expressão indicavam pelo menos ter uma década a mais que ela.

“E eis que termino agora aqui, no bar, chorando”, finalizou Marie. Nakamura pensou um pouco, abriu a boca como se fosse falar algo, mas fechou. Ficaram ambos uns constrangedores segundos em silêncio. Quando Marie já ia perguntar quanto devia pelo uísque, Nakamura falou:

“Olha, nós funcionários não somos encorajados a nos envolver nas vidas dos hóspedes, mas, se me permite dizer, deixe um pouco desse fantasma aqui em Tóquio antes de voltar para a América. Mas carregue sempre um pouco dele em você, pois faz parte de sua história, e seria muito triste você apagar tantos anos”.

Marie não disse nada. Deu um sorriso e agradeceu pelo conselho. Deixou uma nota de 2 mil ienes no balcão e quando já ia se levantar, ouviu a voz de Nakamura.

“Sabe, eu estava aqui, já trabalhava aqui. Quando fizeram as gravações. Eu vi de longe, lá do outro saguão. Eu era jovem. Foram algumas semanas de filmagens. E um dia, no meio de uma cena, recebi uma ligação. Corri pro banheiro e atendi. Era minha mãe, que morava em Osaka, contando que estava com câncer. Ela morreu dois meses depois daquele telefonema. Meu chefe não me deu um dia de folga extra. Tinha de ir sempre correndo, quando podia. Depois da morte dela, pensei em mudar de emprego, tudo aqui me fazia lembrar minha mãe, era doloroso demais. Mas fui ficando. Esse é meu fantasma.

Marie sorriu novamente. “Obrigada por me ouvir e por compartilhar comigo sua historia”. E saiu.

Ao entrar no quarto, ela pensou em toda a programação que teria pela frente se ainda estivesse casada. Aquela seria a madrugada do karaokê. Mas ela estava triste demais, arrasada demais para ir a algum lugar.

Reuniu suas forças, então, para fechar a mala e decidir voltar para os EUA. Ainda com as palavras frescas de Nakamura na cabeça (“deixe uma parte desse fantasma aqui”), ela tirou do dedo a aliança que tanto gostava e deixou escondida embaixo da cama, no cantinho. Com sorte alguma arrumadeira iria encontrar um dia, vender a cara joia e gastar o dinheiro como bem entendesse.

Sentindo-se estranhamente aliviada, ela desceu e chamou um taxi. “Aeroporto Narita, por favor”. O motorista balançou a cabeça afirmativamente. O trânsito estava livre, a cidade mais calma, mas os letreiros em neon enormes iluminavam o rosto de Marie à janela. Tal qual o início de Encontros e Desencontros, com um Bob sonolento indo para o hotel que ela acabara de deixar.

Chegando em Chicago, Marie decidiu livrar-se de mais fantasmas. Esvaziou gavetas e armários e doou tudo que era de Robert e que tinha ficado na mudança. Não tinha seu novo endereço, então foi tudo para doação.

* * *

Dois meses depois, alguém tocou a campanha da casa de Marie. Era um entregador da FedEx. “Encomenda para a senhora”. Curiosa como sempre fora, Marie com uma mão assinava o documento que comprovava o recebimento e com a outra tentava lascar a fita adesiva que envolvia a caixa.

Quando abriu, lá estava ela. A aliança. A aliança que ela deixara meses antes embaixo de uma confortável cama de um hotel em Tóquio. Junto, uma carta.

“Prezada senhora Johnson, a camareira que arrumou seu quarto logo após seu check-in encontrou sua aliança, felizmente com seu nome gravado na parte interna. Desejamos felicidades”.

Johnson. Era seu sobrenome de casada. Era o que constava no cadastro do hotel, cuja reserva havia sido feita há anos.

Marie fechou a porta lentamente. Olhou para a sala. Percorreu mentalmente todos os cômodos. Onde fora feliz. Onde Robert ocupou tanto espaço. E de quem agora já não tinha mais traços. Aquela aliança, que era o fantasma que ela havia deixado em Tóquio, agora se transformara, sem que quisesse, no fantasma que ela iria carregar para a vida inteira.

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