“Nunca voei, mas morro de medo de avião”

Seria possível ter medo de algo que nunca vimos ou experimentamos? Em uma análise mais rápida, tal ideia parece um disparate, pois na maioria das vezes desenvolvemos aversão a algo que conhecemos. Mas, a julgar pelos relatos dessas duas panicadas que entrevistei, a resposta é sim, é bem plausível temer algo desconhecido de nossas vivências. Alexandra Nascimento e Magda Fernandes morrem de medo de voar, mesmo sem nunca terem saído da terra. “Ter medo de algo sem nunca ter feito ou vivido é mesmo muito estranho. Na verdade, eu não sei o que de fato me assusta mais, se é a altura, me sentir fechada dentro de um lugar pequeno, ou do avião cair. Esse medo me acompanha desde criança, mas como nunca viajei com meus pais (que também têm medo), isso não era algo que me atrapalhava. Então cresci assim, achando que voar de avião era algo muito distante. Na vida adulta é que começou a se tornar um problema”, conta a paulistana Alexandra.

 
 

pavor platônico

E o que diz nossa outra panicada? “Acho que (a aerofobia começou) depois de adulta. Sou do interior, na minha infância, quando passava avião, o que era raro, eu gritava ‘me leva, avião’, eu e minhas amiguinhas gritávamos. Então não sei como começou, acho que foi já adulta. Fui descobrir que tenho pavor de altura, em cenas da TV com alguém caindo eu tiro o olhar, não me sinto bem”, conta a professora baiana Magda, que pediu para ter o nome trocado e teve o rosto borrado nas fotos para manter o anonimato.

Alexandra, por sua vez, conta que fica chateada por ter esse medo tão grande. “Agora, por exemplo, com a aproximação das férias de julho, eu já começo a ficar ansiosa esperando meu esposo me fazer a proposta de ir para algum lugar e eu acabar negando. Fico frustrada por não conseguir superar”, diz a paulistana, que já desistiu de fazer algumas viagens, como conhecer o parque do Beto Carrero em Santa Catarina com os filhos. E será que algum dia ela espera superar esse medo? “Será a realização de um sonho pra mim, o que para alguns é tão normal. Tenho muita vontade de conhecer a Europa, levar meu filho para Londres, minha filha para a Disney, além de conhecer mais do Brasil! Um dia consigo”, conta, esperançosa.

Mas por enquanto ela vai administrando o pavor de avião como pode. Em 2019 e 2023 fez viagens de carro para o Ceará, onde mora parte da família do marido. Foram três dias para ir e mais três para voltar, relembra a paulistana. Um dado curioso: apesar de nem conseguir se imaginar a 12 mil metros de altura, ela ama as aeronaves. “Eu gosto bastante de aviões, acho incrível, de verdade! Gosto de saber como funciona uma aeronave, acho tudo que envolve muito bonito. Nós (ela e a família) vamos bastante lá no memorial em Congonhas e ficamos horas filmando e admirando os pousos e decolagens”, afirma, se referindo ao Memorial 17 de Julho, construído ao lado do aeroporto paulistano no local exato onde o voo 3054 da então companhia aérea TAM caiu em 2007.

 

Alexandra gosta de ir com a família ao Memorial 17 de Julho (esquerda), em São Paulo, para ver pousos e decolagens. Na foto da direita, de 2012, ela aparece com o filho na porta de uma aeronave no antigo Museu da TAM, em Ribeirão Preto (SP). “Foi o mais perto que cheguei de um avião”, conta Alexandra

 

A baiana Magda Fernandes, assim como Alexandra, também encara as rodovias sem problemas. “Já fui para São Paulo, Maceió, Recife, Minas Gerais e até Rio Grande do Sul, tudo de ônibus”. Apesar de já ter ido até o estado mais ao sul do país, em um outro momento ela perdeu uma oportunidade de fazer um curso em Pelotas (RS), com tudo pago. Inclusive a passagem de avião. Assim como a cantora Amy Winehouse, ela teve de dizer“não, não, não”. Outra vez o irmão de Magda propôs uma viagem a Portugal, país que a panicada sonha em conhecer. “Fiquei uns 12 dias meio que apavorada, dormia e acordava com aquele pavor. Porque queria conhecer lá, mas lembrava da viagem e ficava com medo”, conta, acrescentando que os pesadelos seguidos só pararam de assombrar suas noites quando a tão sonhada viagem foi enterrada de vez.

Magda não costuma divulgar a aerofobia aos quatro ventos, a ponto de esconder o assunto das amigas. Uma vez uma cunhada disse para ela: “Nossa, não acredito, isso (o temor de avião) não combina com você.” Nessas ocasiões, ela prefere não comentar. “Fico calada, digo que não tenho medo, para uns até já deixei no ar que já viajei”, diz a baiana. Quem também passa por situações similares é Alexandra. “Algumas (pessoas) acham que não é pra tanto, sabe? Que medo é só enfrentar, são poucas as que compreendem. Tenho até um conhecido que é piloto e, sempre quando o encontro, ele me fala a mesma coisa”, afirma.

 

Magda na Lagoa dos Tambaquis (SE), na foto da esquerda; e em Aracaju (SE), na imagem da direita

 

E quando se imaginam em um avião, no alto, quais são as sensações que chegam à cabeça das duas entrevistadas? “Ou eu penso que vou amar ou vou morrer de tanto medo. Penso nas sensações físicas que a ansiedade sempre me faz sentir, como a dor de estômago e a tremedeira, até a felicidade de ver um céu tão lindo como quem está em um avião pode ver”, conta Alexandra.

Sobre acompanhamento profissional, Magda revela que nunca buscou tal tipo de ajuda. “Acho que é normal ter medo. Tenho assistido vídeos de Tati (Tati Mônico, piloto) e acho que ela tem me dado coragem, fala muito de como é viajar, que é seguro, que a turbulência não é perigosa, então já estou meio que criando coragem de fazer viagem, uma curta, tipo Salvador para Aracaju, e depois ver se vou perder o medo de vez, esses vídeos me deixam com mais segurança”, diz. A viagem entre as duas cidades nordestinas dura em média 50 minutos.

Ela está certíssima, buscar informações é um ótimo passo para lidar melhor com a aerofobia. Assim como uma terapia. “Já tentei (sessões com psicóloga), entender de onde surgiu um medo de algo que não vivi e como poderia me ajudar a superar. Já passei até por mais de um profissional. Por enquanto sigo tentando entender e criar coragem para tentar enfrentar”, conta a admiradora de aviões que tem uma relação conflituosa com seu objeto de amor.

Seguir tentando entender. Parece um bom passo. Quem sabe um dia acabe dando em um embarque.

O que diz a psicologia — entrevista

Para esta matéria, conversei também com a psicóloga e psicanalista Aurinez Schmitz (@psiaurinez), que já esteve à frente do projeto Voe Bem, que atendia pessoas que têm medo de voar. Além do acompanhamento psicológico, havia outras atividades, como contato com pilotos, sessões em simuladores e voo acompanhados pela equipe do projeto. Hoje ela ainda atende presencialmente em Porto Alegre (RS) ou online.

  1. Por que é possível sentir medo por algo que nunca vivenciamos ou que nunca experimentamos, como o caso do medo de voar em pessoas que nunca voaram?

O medo de voar, mesmo em quem jamais teve essa experiência, é frequentemente relacionado a transtornos de ansiedade. A ansiedade, em sua base, não é necessariamente negativa — ao contrário, ela pode ser funcional. É ela que nos impulsiona a estudar, nos preparar, agir com cautela diante de situações novas ou desafiadoras.

No entanto, quando a ansiedade se torna excessiva, ela perde essa função adaptativa e pode se tornar paralisante. Nesse caso, o medo deixa de estar diretamente ligado à situação real e passa a ter uma origem emocional, subjetiva.

O avião, nesse contexto, torna-se apenas o símbolo de algo mais profundo. Algumas pessoas que sempre voaram bem, por exemplo, relatam que "de repente" passaram a ter medo. Isso acontece porque, em algum momento, houve uma associação inconsciente — um elo emocional — entre o voo e alguma vivência ou angústia interna. Assim, não é necessário ter passado pela experiência concreta para desenvolver o medo: basta que, em nível psíquico, o avião represente uma ameaça.

O medo, portanto, pode emergir daquilo que simbolicamente nos toca — e não apenas do que foi vivenciado na realidade.

2. O que leva uma pessoa a desejar intensamente algo e, ao mesmo tempo, temê-lo a ponto de evitá-lo completamente? Como essa ambivalência emocional se forma?

A ambivalência é uma característica humana. Somos feitos de contrastes: queremos e, ao mesmo tempo, temos dúvidas; desejamos, mas também tememos. Essa contradição emocional pode aparecer em diversas situações — não apenas ao voar. Podemos, por exemplo, desejar muito um novo trabalho e, ao mesmo tempo, sentir receio de não dar conta.

Quando alguém deseja algo com intensidade, mas evita essa realização por medo, há um conflito interno entre o desejo e a realização deste desejo. É como querer acelerar um carro, mas quando vê puxa o freio de mão. O desejo nos move, mas o medo nos trava — e, muitas vezes, essa trava não está na situação em si, mas no que ela representa.

No caso do medo de voar, por exemplo, o avião pode ser apenas um símbolo. O verdadeiro conflito pode estar no que esse voo representa: mudanças, liberdade, distância, ou até mesmo a possibilidade de perder o controle. Por isso, o trabalho terapêutico não se limita a tirar o medo do avião, mas a entender o que há por trás dele. E lembrar que para cada pessoa esse medo terá um significado. 

O essencial é investigar e é nesse território subjetivo que se abre possibilidades para a possibilidade de superação.

3. É possível que o medo do desconhecido seja, na verdade, uma forma de autoproteção contra uma transformação muito desejada, mas assustadora?

Sim, muitas vezes o medo do desconhecido pode funcionar como uma forma de autoproteção psíquica diante de uma transformação que, embora profundamente desejada, também traz angústia. Isso se conecta diretamente à nossa ambivalência: ao mesmo tempo em que queremos algo, podemos inconscientemente impedir sua conquista.

É o que chamamos, em muitos casos, de auto-boicote. A pessoa deseja intensamente determinada mudança — uma nova fase, uma realização, um projeto de vida — mas, no momento de se aproximar da concretização, surge um medo que a paralisa. É como se ela mesma puxasse o próprio tapete.

Esse medo, entretanto, não é igual para todos. Cada indivíduo carrega significados únicos para suas emoções e conflitos. O medo de voar, por exemplo, pode surgir em diferentes momentos da vida e com diferentes sentidos. Imagine alguém prestes a começar o emprego dos sonhos — mas para isso, precisa pegar um avião. O medo do voo pode, nesse caso, simbolizar não apenas o receio de estar no ar, mas toda a carga emocional envolvida naquela mudança: novas responsabilidades, sair da zona de conforto, dar certo.

O avião, então, não é o problema em si — ele se torna apenas a “cereja do bolo”, o ponto onde se concentra a tensão emocional de um processo muito maior. Por isso, compreender o que está por trás do medo é fundamental para acolher o conflito e dar espaço à transformação.

4. Quando o imaginário ocupa o lugar da experiência, ele tende a exagerar os riscos ou perigos? Por que criamos cenários tão intensos sobre o que nunca vivemos?

Sim, quando o imaginário toma o lugar da experiência concreta, ele frequentemente amplia os riscos e perigos de forma desproporcional. Isso ocorre porque o medo, nesse contexto, vem de conteúdos emocionais internos — fantasias, angústias e associações subjetivas.

Mesmo que alguém experiente, como um piloto, afirme: “voar é seguro”, essa informação, por si só, costuma ser insuficiente. A experiência e o conhecimento técnico não são capazes de neutralizar o medo quando ele tem origem emocional.

Esse tipo de medo não é racional — ele emerge de dentro e domina a pessoa, escapando à lógica.

5. Por que nossa mente às vezes escolhe a dor antecipada em vez da possibilidade de algo bom?

Nos transtornos de ansiedade, o sofrimento não acontece apenas no momento da experiência — ele começa antes, se intensifica durante e muitas vezes permanece depois. A antecipação do que pode dar errado é tão angustiante que ofusca qualquer possibilidade de prazer.

Para quem observa de fora, pode parecer ilógico: afinal, estamos falando de algo positivo — uma viagem, uma conquista, uma novidade. Mas essa positividade é percebida sob a ótica de quem não está imerso no medo. Para a pessoa ansiosa, mesmo algo bom pode ser emocionalmente ameaçador.

Imagine alguém que vai viajar para Cancún. Prazer garantido? Não necessariamente. O medo do voo, da mudança, daquilo que escapa ao controle pode ser tão intenso que o prazer da viagem se torna inacessível.

Esse medo, por mais desconfortável que pareça, funciona como uma forma de defesa emocional. De maneira inconsciente, a pessoa está tentando resolver algo dentro de si, e o medo acaba ocupando esse lugar. Não se trata apenas de evitar um risco real, mas de manter um certo equilíbrio interno diante de um conflito que ainda não foi elaborado.

Assim, a mente escolhe, sem perceber, a dor antecipada — porque ela parece mais segura do que se abrir para o desconhecido, mesmo que esse desconhecido traga algo bom.

RivorivotravelComment