Limpe seus armários

No fundo da gaveta, entre faturas velhas e o peso do anos, jazia um empoeirado rolo de fotografia, desses que até os anos 2000 as pessoas usavam em máquinas analógicas para registrar aquilo que a memória provavelmente esqueceria. “Limpe seus armários”, recomendou a psiquiatra. E, assim, Vicente achou um pedaço curto de sua vida que nem mais lembrava.

 

Contos do rivotravel

 

O misterioso filme, embalado em uma caixinha preta, continha uma etiqueta. Rio de Janeiro, 2005. Vicente costumava grudar esses pequenos rótulo pois revelar as fotografias era caro e nem sempre ele podia pagar logo após uma viagem. E assim a cápsula do tempo em miniatura foi ficando esquecida, até ser redescoberta quase vinte anos depois. Uma época passada na qual Vicente tinha 30 e poucos anos. Era namorado de Julia. Era feliz e sabia disso.

Mas tudo desmoronou em alguns dias. Julia foi embora, disse que não mais o amava. Não que isso tenho empurrado o engenheiro para os antidepressivos. Já usava os comprimidos desde a adolescência. Julia não teve nada a ver com isso. Mas, olhando para o tubinho preto na mão, com imagens cariocas desconhecidas, Vicente teve a nítida impressão de que ali estava o divisor de águas, o último respiro de uma vida sem peso.

A viagem foi planejada vários meses antes. A grana era curta e cada passo deveria ser estudado na vida do casal pernambucano. Ficariam na casa de uma ex-colega de faculdade de Julia. Iriam numa quarta-feira, dia de passagens mais baratas, e voltariam na segunda-feira de madrugada, a tempo de pegar no serviço horas depois. Por ironia do destino, o domingo também já havia acabado quando Vicente descobriu o rolo de filme na gaveta.

E assim foi. Ambos não conheciam o Rio. Fizeram o pacote turístico completo: praias (do Leme ao Leblon), Corcovado, Pão de Açúcar, Lapa de noite para um chopinho. Uma noite, se permitiram uma ida à famosa Pizzaria Guanabara. Esperavam ver algum artista famoso da Globo, mas o máximo que conseguiram foi um autógrafo de um ator de segundo escalão da novela das sete. Estavam felizes.

E conscientes de uma plena satisfação viveram os dias por lá. De manhã sempre reservavam umas horas para lagartear ao sol, estirados na areia sem alugar as cadeiras oferecidas a preços fora do orçamento do casal.

Tudo aquilo parecia agora anos-luz da realidade de Vicente. Depois do Rio, depois do fim, mergulhou nos estudos e recomeçou a vida como funcionário público. Duas décadas depois, já se permitia viagens mais longas, com menos aperto, com direito a hotéis com quartos espaçosos e edredons brancos. De Julia, nada sabia. Sumiu do mapa. Uma vez, em uma viagem a Nova York com a mãe, lembrou da antiga namorada. Procurou em todas as redes sociais. Nada. Teria bloqueado o ex-namorado? Nada achou no Google. Teria morrido? Quando nem o Google dá respostas é hora de começar a pensar no pior.

O sabor do mate gelado sob o sol carioca escaldante. A empadinha de frango.

Onde andará Julia? “Será que eu teria uma segunda chance, uma segunda change de ser feliz?”, pensou Vicente.

A segunda-feira já raiava no Recife. Dezenove anos atrás, cada um ia para seu trabalho. Hoje, Vicente calçava os sapatos para ir ao shopping revelar o que quase vinte anos escondiam em meio às névoas da mente. Chegando ao RioMar, foi para a lojinha onde costumava fazer as revelações na juventude. O antigo lugar virou um negócio de artigos de 1,99. Depois de algumas pesquisas na internet e seis ligações, localizou uma loja na zona norte do Recife que ainda fazia o serviço. Voltou a pé pra casa, buscou o carro, pegou o engarrafamento e acabou chegando ao destino completamente ensopado de suor.

Fica pronto em uma hora, disse o funcionário.

Vicente rodou pelo quarteirão em busca de algum café para esperar enquanto aguardava nem sabia o quê. Achou uma pracinha sombreada. Sentou. Umas crianças brincavam no parquinho ao lado, sob o olhar atento das babás, todas pretas e enfiadas em apertados uniformes brancos. “Como o mundo mudou em 19 anos”, observou. Antigamente não teria reparado nesse detalhe.

Pássaros pousaram a poucos metros dos pés doloridos de Vicente. “Meu Deus, que pássaros feios, acho que é a primeira vez que vejo aves assim feias”, pensou. “Ou seria o véu da depressão?”, complementou o pensamento. Chegou à conclusão de que eram passarinhos feios mesmo.

“Como era Julia?”, questionou-se Vicente, se dando conta de que tinha parcas lembranças da antiga namorada. Era loira, alta, braços compridos. Mas se fechasse os olhos talvez tivesse dificuldades de descrevê-la com detalhes para um desconhecido.

Mas por algum motivo aquela viagem estava gravada em sua memória em todos os detalhes.

Deu a hora. Vicente andou em passos apressados em direção ao passado. Pagou, pegou. Na calçada estreita abriu o envelope de papel, como costumava fazer muitos anos antes. Mas o vai e vem de pessoas pedindo licença fez Vicente voltar à praça. Sentou no mesmo banco. Tirou as 36 fotos. Foi passando uma a uma.

Tudo preto, tudo preto, tudo preto. Todas queimadas. Talvez pelo tempo que o rolo ficou no fundo escuro da gaveta. O nada foi revelado.

Na última foto, uma imagem era parcialmente vista. Era Vicente. Dezenove anos mais novo. Mais gordo. A camisa do ACDC que tanto amava. Era o verão quente do Rio de Janeiro. Um sorriso no rosto. Era feliz. Nada de Julia. Apenas ele, o futuro e talvez a certeza que o futuro daquele casal era reservado a tempos idos.

Vicente olhava a si mesmo sorrindo. O choro quase veio, mas quem brotou na face não foi uma lágrima. Foi um discreto sorriso. Vicente era assim. Foi assim. E se tudo desse certo, continuaria assim. Espalhafatoso na alegria, discreto na dor. O passado já não mais importava. Ficara no fundo da gaveta, não revelado.