Histórias de acidentes não fatais e o que eles têm a nos ensinar #03 — British Airways 5390

Na semana passada, publicamos uma matéria sobre os cinquenta anos do emblemático filme Aeroporto e eu ainda brinquei, dizendo que era um texto postado aos 48 minutos do segundo tempo, pois 2020 já estava acabando. Pois dobrei a meta e lanço aqui, aos 50 minutos do segundo tempo (eita partida que não acaba!) uma matéria sobre um acidente que ocorreu há 30 anos. Bem-vindas e bem-vindos à terceira edição do Histórias de acidentes não fatais e o que eles têm a nos ensinar, dessa vez destacando o caso do voo 5390 da British Airways.

 
20201225-rivotravel-aviacao-historia-acidentes-quase-piloto-fora-aviao-tripulacao-pouso-emergencia-medo-panico-aeroporto
 

Caso você já tenha lido as outras edições da série (links no final desta matéria!), sugerimos pular a introdução abaixo.

A ideia de fazer essa série veio de uma inquietação. Apesar de nosso consciente saber que o avião é um meio de transporte super seguro, ganhando de lavada de outros como carro ou ônibus, ainda assim muitos se veem indo em direção à guilhotina cada vez que entram em uma aeronave. Visualizando aquela estrutura metálica envolta em uma bola de fogo com destino à morte. Acontece que muitos incidentes que ocorrem durante o voo sequer são percebidos pelos passageiros (e isso é tema para uma outra matéria) pois são resolvidos sem alardes pelos comandantes. E mesmo os de maior gravidade, que geralmente levam a um pouso de emergência, muitas vezes acabam sem vítimas fatais — ou mesmo sem feridos. Por isso, para tranquilizar as panicadas, panicados e simpatizantes, resolvi fazer essa série, para desmistificar a ideia segundo a qual todo acidente é fatal. Trazer à tona casos que, devido à perícia da tripulação ou à alta tecnologia do avião, não passaram de um grande susto. “Acidentes que ameaçam a vida (inclusive aqueles que não têm sobreviventes) são muito raros. Um evento desses só ocorre a cada 5,7 milhões de partidas”, afirmou, em 2017, em entrevista à BBC Brasil, Edwin Galea, professor da Universidade de Greenwich — ele é matemático, especialista em engenharia de segurança e desenvolvedor de simulações. ”Digamos que se uma pessoa voasse todos os dias, experimentaria um acidente catastrófico em algum momento dentro dos próximos 2,7 mil anos”, declarou ao mesmo veículo de comunicação Perry Flint, porta-voz da IATA (Associação Internacional de Transporte Aéreo, da sigla em inglês).

Vamos então aos fatos!

O voo 5390 era uma rota regular da British Airways entre a cidade inglesa de Birmingham e a espanhola Málaga. Naquele dia 10 de junho de 1990, as passageiras e passageiros pareciam alegres, em busca da ensolarada cidade de destino. O avião, do modelo BAC 1-11, decolou às 8h20 com 81 passageiros e seis tripulantes. O comandante era Timothy Lancaster, então com 42 anos, e o copiloto era Alastair Atchison, com 39 anos na época. Ambos eram experientes, com mais de mil horas voadas em BAC 1-11.

 
Modelo envolvido no acidente foi o BAC 1-11, um jato de curto alcance produzido pela empresa inglesa British Aircraft Corporation

Modelo envolvido no acidente foi o BAC 1-11, um jato de curto alcance produzido pela empresa inglesa British Aircraft Corporation

 

A decolagem ocorreu sem problemas. Depois de alcançar nível de cruzeiro (que é aquele no qual o avião faz sua rota), os dois pilotos tiraram os cintos de segurança. Justo quando o comissário de bordo Nigel Ogden entrou na cabine para servir o café da manhã, houve um forte estrondo. A janela do lado esquerdo, aquele onde Lancaster estava sentado, foi arrancada, provocando uma descompressão. Lancaster foi sugado para fora, mas, por sorte, parte da perna ficou presa no painel de controle. Em uma ação rápida, o comissário Ogden segurou as pernas do comandante, cujo corpo estava quase totalmente para fora, na lateral do avião.

O copiloto Atchison então assumiu o voo e efetuou uma brusca descida, para uma altitude na qual o nível de oxigênio permitisse a respiração a bordo. O cenário era caótico, com papeis e objetos voando por toda parte na cabine. Para piorar, a comunicação com o centro de controle de tráfego aéreo da região era falha, por conta do barulho do vento. A cabeça de Lancaster batia do lado de fora contra a fuselagem e sangrava, e o corpo estava exposto a ventos de 600 quilômetros por hora e a uma temperatura de 50 graus celsius negativos. Todos achavam que o piloto estava morto. Ogden continuava segurando as pernas do comandante. Caso ele se soltasse, poderia se chocar com a asa ou com a turbina, causando algum prejuízo à estrutura e dificultando ainda mais a tarefa de pousar aquele avião. Em um certo momento, Ogden, exausto, deu lugar a outros dois comissários ( John Heward e Simon Rogers) na tarefa de segurar o comandante.

 
Reprodução dos momentos de pânico na cabine do voo 5390, com o comandante Lancaster projetado para fora da aeronave

Reprodução dos momentos de pânico na cabine do voo 5390, com o comandante Lancaster projetado para fora da aeronave

 

O caos durou vinte minutos (que certamente devem ter parecido uma eternidade). Atchison conseguiu pousar em segurança no aeroporto de Southampton, no sul da Inglaterra. Para surpresa de todos, o comandante estava vivo, apesar dos choques com a fuselagem, do frio e do ar rarefeito. Ele teve “apenas” alguns fraturas e queimaduras por conta do frio. O comissário Ogden descolocou o ombro e teve a face queimada pela baixa temperatura. Todos os seis tripulantes foram homenageados pela Royal Association for Disability and Rehabilitation.

 
Comandante Timothy Lancaster se recuperando no Southampton General Hospital rodeado pela tripulação (da esquerda para a direita): Alistair Atchison, John Howard, Nigel Ogden, Susan Prince e Simon Rogers

Comandante Timothy Lancaster se recuperando no Southampton General Hospital rodeado pela tripulação (da esquerda para a direita): Alistair Atchison, John Howard, Nigel Ogden, Susan Prince e Simon Rogers

 

Durante as investigações, foi encontrado o pedaço da janela da cabine dos pilotos que se soltou em voo. A conclusão final apontava que os parafusos usados em uma troca do vidro 27h antes do voo 5390 não eram os indicados pelo fabricante para o BAC 1-11. As peças colocadas erroneamente tinham um diâmetro 0,66 milímetro menor que o modelo apropriado — isso mesmo, menos de um milímetro de diferença. O Air Accidents Investigation Branch, órgão governamental para questões de acidentes aéreos, fez uma série de recomendações para a British Airways, como uma reavaliação do controle de qualidade da empresa.

A tripulação voltou a voar pouco tempo depois, inclusive o comandante Lancaster.

É isso, minha gente. Nem tudo está perdido quando algo dá errado! Que sirva de lição pra todas e todos nós. Por um 2021 mais encorajador.

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