Vivendo com o inimigo: o medo de voar e a proximidade com aeroportos
Barulho alto. Acordei no meio da noite, com aquela desorientação de quem está dormindo em um lugar que não é a própria casa. Rapidamente me lembrei: estava na casa de minha tia, em Brindisi, no sul da Itália. Os vidros vibravam de forma cadenciada com o aumento do ronco que vinha lá de fora, do alto. Me dei conta de que era um avião decolando de madrugada. Não era a primeira vez que dormia naquela cama, minha tia mora naquele apartamento desde que me entendo por gente. Mas daquela vez era diferente, eu havia desenvolvido um enorme medo de voar, e quando temos uma fobia, a percepção do mundo muda. Antes ouvia o som dos motores das aeronaves que decolavam ali perto e não me abalava, nem notava. Não era algo que tirava o meu sono (literalmente, no meu caso, naquela ocasião).
O pequeno prédio, onde tanto brinquei na infância, fica a uma distância de menos de 10 minutos a pé até a pista de pousos e decolagens — mais uns 10 minutos e chega-se ao terminal de passageiros. Antes de cair no sono outra vez, me perguntei: será que me acostumaria a morar aqui? Acho que sim. Não tenho muito medo de um acidente tipo o do Fokker 100 da TAM em 31 de outubro de 1996 (Dia das Bruxas), que caiu sobre casas de um bairro residencial logo após decolar do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Pensei, sonolento: um desastre assim é possível? Sim, claro. Muitas coisas são possíveis nesse mundo. Mas é provável? Não, nem um pouco. Basta olhar as estatísticas e lembrar: a aviação é muito segura. Como último gesto, anotei no celular a pauta para o rivotravel: como é a vida para panicadas que moram perto de aeroportos? Adormeci.
Distância da casa de minha tia até o aeroporto da cidade de Brindisi, na Itália
Dois anos depois, cá estou eu escrevendo a matéria. Para ela, entrevistei duas panicadas que têm pistas como vizinhos. Há similaridades entre as histórias. E parece que o ser humano realmente se acostuma a tudo.
Convivência entre vizinhos
A arquiteta Daniela Blumetti mora desde 2018 em Lisboa, Portugal. Da casa dela, todas as janelas são voltadas para a pista do aeroporto da cidade. Dá pra ver bem também as pistas de táxi, ou seja, aquelas em que as aeronaves circulam entre o pouso ou decolagem e a chegada ao terminal aeroportuário. Na hora de se mudar, pensou: como seria aquela experiência de morar tão pertinho do objeto de seu medo? “Pensava se ia acontecer um processo de me saturar, ao ver a falta de acidentes e incidentes de maneira geral, que seria positivo; ou se ia ficar tensa vendo os aviões, pousos e decolagens. Me preocupou também a questão do barulho, mas aqui todos os vidros são duplos, então é um nível de barulho que não me incomoda. Nós ficamos com vidros fechados boa parte do ano, abrimos mais no verão, e mesmo no verão não me incomoda”, afirma Daniela.
A arquiteta conta que às vezes fica vendo o movimento do aeroporto pela janela, fato que ela acha interessante. De dentro de casa, observa pessoas que param perto da pista com grandes câmeras, com lentes teleobjetivas, para ficar fotografando (os chamados spotters), e muitas vezes aparecem famílias inteiras com crianças pequenas. Os sete anos ao lado do aeroporto ensinaram a brasileira a identificar modelos de avião, companhias aéreas e rotas. Morar ali acabou normalizando um pouco o mundo da aviação para ela — o medo ainda existe, sobretudo quando viaja em aeronaves pequenas. “Muitas vezes nem lembro que tem um aeroporto ali na frente, mas gosto de ver quando passa um avião diferente, ou um jatinho. Aí penso `ah, tem alguém muito rico que passou aqui agora. Será que é Cristiano Ronaldo, um dos famosos aqui de Portugal?”, questiona.
Vista da janela do apartamento de Daniela Blumetti em Lisboa: aeroporto Humberto Delgado a dois passos de casa
Daniela conta também sobre ocasiões interessantes, como quando está decolando ou pousando na cidade e consegue ver claramente as janelas de casa. “Dá pra ver bem de frente, e quando chego de viagem, cansada, e vejo meu apartamento (de dentro do avião), já dá um calminho”, diz a brasileira, que gosta de obter conhecimento técnico sobre a aviação como forma de diminuir o desconforto de voar.
Mas o que não passa mesmo é a sensação ruim de um possível acidente aéreo no local. “Morro de medo. É uma parte do pensamento catastrófico, da ansiedade, talvez, ou então um pensamento normal, não por ser panicada nem nada”, pondera, lembrando do acidente da TAM em Congonhas, não o de 1996 citado no início deste texto, mas o de 2007, quando o Airbus vindo de Porto Alegre não conseguiu parar na pista molhada e acabou saindo da pista. Daniela acredita que, se algo fugir do controle com algum avião em Lisboa, é bem possível que caia nas redondezas do prédio onde mora. Ela evita pensar nisso, embora conte que tem uma mania. “Em alguns momentos que vejo um avião decolando me dá um leve nervosinho, aí vejo ele subindo e fico (pensando) ‘ai, que dê tudo certo, que dê tudo certo’. Até chegar à altura de cruzeiro, me vejo torcendo. Mas aí eu penso: ‘Daniela, siga sua vida, deixe que eles (os pilotos) sigam pilotando o avião’. É meio que uma necessidade de controle. Mas aí digo: ‘deixe que eles sigam o voo deles, você não precisa torcer nem prestar atenção, siga seu dia”, conta, acrescentando que teme os impactos que um possível acidente em Lisboa poderia ter nos avanços que já conseguiu na terapia. “Mas nunca aconteceu nada que estivesse fora da normalidade”, diz.
Já escuto teus sinais
Outra panicada que também está acostumada com os aviões passando bem de perto é a designer de interiores Andressa Guedes, que sempre morou na mesma casa no bairro de São Cristóvão, que é “muro com muro” com o aeroporto de Salvador. Mas o medo de voar ainda existe, apesar da “intimidade”com as aeronaves desde cedo. “Toda vez (que viajo) fico apreensiva, penso nas tragédias. Busco pesquisar sobre como funciona o avião, e ainda assim fico com aflição. Hoje acho até que está mais leve (a aerofobia). Quando comecei a ver que o medo poderia me impedir de muitas coisas, comecei a pesquisar, ver como funcionava. Sempre achei surreal como um avião fica no ar, hoje entendo, mas ainda fico estupefata. O racional já entende, falta o emocional entender”, conta.
O bairro de São Cristovão, onde mora Andressa desde que nasceu, fica do lado do aeroporto de Salvador
Ela relata que quando era criança temia que algum avião caísse, mas que hoje não tem mais esse medo. “A gente vai se acostumando, já nem ouço o barulho. Mas quando era pequena, tinha um avião cargueiro que passava de madrugada, ouvia ele passando parecendo que ia levar as telhas, muito baixo”, conta. Para sorte de Andressa, a tal rota com a aeronave bem pesada e barulhenta varando o silêncio noturno não existe mais.
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Pelo visto, morar perto de aeroporto não é tão assustador assim. Dá até para lidar de uma forma realmente sadia com a proximidade dessas enormes máquinas que nos assustam tanto.