Um dia o medo vai embora

Perdeu a formatura da sobrinha no Rio de Janeiro, faltou ao casamento da irmã em Manaus, não viu seu time ser campeão do mundo do outro lado do planeta, recusou o convite fantástico para assumir um cargo na filial da empresa no Chile, acabou o relacionamento com a namorada aventureira que se cansou de nunca viajar para mais longe do que o carro podia levar, passou todas as férias dos últimos doze anos em casa, vendo documentários sobre viagens, culinárias exóticas, cores e sotaques e gentes e jeitos e arquiteturas e formas diferentes.

O tempo para José foi passando, até que um dia ele olhou no espelho e ficou com medo da morte. Não de falecer dentro de avião. Mas de morrer sem ter visto as coisas. De não ter se visto nas coisas que via. Então resolveu encarar seus próprios medos. Buscou terapia. Começou a meditar, não deu certo, passou para yoga, não deu certo, voltou para meditação. Não funcionou de novo. Viu que essa onda zen não era pra ele e caiu fora, mas acabou aprendendo uma coisa ou outra sobre a importância da respiração e como isso poderia ajudar nos momentos de ansiedade. Com muito esforço e lágrimas, descobriu que a necessidade de estar sempre no controle era a causa do medo de voar.

E, sem controle, num dia de muito descontrole emocional, ele foi ao aeroporto, sem mala. No taxi, pensou: vou entrar nos saguão do check-in, procurar a loja da companhia aérea mais próxima e pedir uma passagem no próximo voo doméstico, não importa o destino. “A vitória de hoje vai ser o voar, não o chegar” , repetia baixinho, como um mantra, gerando olhares desconfiados do taxista. Corrida paga, entrou no aeroporto, virou à direita. Balcão sem fila, bom sinal. “Qual o próximo voo?”, perguntou. “Para onde, senhor?”, respondeu a atendente, com sorriso mecânico e dentes perfeitamente alvos. “Tanto faz”, disse, entregando o cartão de crédito para a incrédula funcionária.

Assim foi José dando os últimos passos de um homem em direção à sala de embarque. Olhou para o cartão de embarque como quem encara o chicote do algoz a caminho do calvário. João Pessoa, estava escrito. “A tinta preta está falhando, eles precisam recarregar o cartucho”, pensou. Seria isso um mau sinal? Deveria voltar e pedir um outro cartão? Em um outro voo? Pedir reembolso? Deu meia volta. Antes de percorrer poucos metros, ouviu o anúncio do início do embarque de seu voo. Um outro sinal? Ficou confuso, não sabia pra onde ir. Fechou os olhos e decidiu usar o pequeno pedaço de papel mal impresso como moeda. “João Pessoa pra cima, embarco. Pra baixo, vou embora”. O delgado material planou no ar e caiu lentamente no chão. Deu a capital da Paraíba.

Agora não tinha mais jeito, estava decidido. Entregou a “moeda” e a identidade (e a vida) nas mãos da funcionária da companhia. Boa viagem, disse a moça. “Amém”, respondeu o ateu José. Seguiu andando com passos pesados e incertos, o corredor da morte levando à sua cadeira não-elétrica. Sentou, colocou o cinto, apertando o apetrecho como quem ajusta a corda ao redor do pescoço. José estava pronto para seu ocaso.

Mas o juízo final não tinha agendado ainda a data do rapaz. Ao invés disso, mandou um passageiro meio hippie, de seus cinquenta e tantos anos. Vendo o nervosismo do vizinho de assento, as pernas que não paravam de balançar, o corpo teso na poltrona, resolveu puxar papo. Antes mesmo da decolagem já havia contado quase toda sua história de vida para o nervoso passageiro, as quedas e recomeços, a viagem de moto cruzando o Brasil, os amores, traições, rompimentos e as voltas por cima. Mas José só sorria de modo automático. Sua mente estava viajando para seu próprio velório. “Será que a Marcinha vai me dar o último adeus? Terminamos tão mal…”, relembrou, com certo pesar.

 
Arte feita sobre detalhe do quadro The Puszta, do pintor húngaro Károly “o velho” Markó

Arte feita sobre detalhe do quadro The Puszta, do pintor húngaro Károly “o velho” Markó

 

A decolagem foi horrível. O avião subiu macio, é preciso dizer. Mas, para José, aquele tubo metálico iria se partir ao meio a qualquer momento. Sentia o suor despencando nas têmporas e deslizando por cima da coluna, formando uma cachoeira de gotas solitárias. O voo foi rápido — menos para o passageiro em pânico, que se assustava com qualquer estalo, com qualquer mínima variação na potência dos motores. Na hora do pouso, não se conteve e segurou a mão do senhor hippie, que devolveu o gesto com um sorriso.

Quando já estava desembarcando, lamentou que não teria o recém-conhecido companheiro de viagem para a volta. Antes que pudesse falar alguma coisa, o oráculo da meia-idade virou e disse: “Você vai morrer. Um dia você vai morrer. Mas não vai ser em um avião. Sempre tenha em mente isso”.

“Era para me ajudar? Ou me aterrorizar ainda mais?”, pensou José, a caminho da loja da companhia aérea para comprar a passagem de volta. Enquanto esperava na fila, lembrou de sua própria infância, quando a morte era algo distante e tudo se resumia a subir no pé de manga mais alto que o prédio onde morava, sem medo de cair, e de lá de cima ver a cidade inteira. Não era grande o núcleo urbano, mas também eram pequenas suas ambições à época.

Foi pensando em vida e morte, em coragem e medo, nas coisas que vamos achando e deixando para trás, foi com todo esse excesso de bagagem em mente que José embarcou para o segundo voo. “Um dia eu vou morrer”, pensou. “Um dia”. O voo de volta foi um pouco mais mais complicado, com uma turbulência que não ia embora. “Um dia eu vou morrer”. E, sem nem perceber, sua mente começou a completar a frase: “mas não hoje”. Na hora do pouso, o avião balançou tanto que alguns passageiros gritaram de pavor. José só sabia rir — um riso um tanto quanto nervoso, é bem verdade. “Ah, se essas pessoas soubessem que ainda terão de seguir com suas vidas maravilhosas e medíocres por semanas, meses e anos”, pensou.

E entre esse dia e o dia de sua morte, José viu a defesa da dissertação de mestrado e da tese de doutorado da sobrinha, foi para o segundo casamento da irmã (e para o terceiro também), viu o time ser campeão do mundo mais uma vez, aceitou um convite para trabalhar no Canadá, conheceu uma japonesa interessantíssima durante uma viagem a Tóquio e viu nascer um lindo relacionamento a distância. E, sobretudo, nunca mais passou os dias de férias em casa. Viajou o mundo e conheceu culinárias exóticas, cores e sotaques e gentes e jeitos e arquiteturas e formas diferentes.

E por não ter controle de nada, José morreu aos 98 anos de idade, numa terça-feira chuvosa — clima que odiava. Morreu em terra firme. As cinzas, conforme pedido de José, foram jogadas ao vento.