Argentina fora de rota: menos turistas brasileiros no país vizinho
Outrora sinônimo de cultura, belas paisagens e compras a preços acessíveis, a Argentina vem perdendo o posto de destino queridinho dos turistas brasileiros por conta dos preços galopantes. O efeito é sentido ainda mais agora, na chamada “temporada de inverno”, quando destinos como Bariloche, Mendoza e Ushuaia eram invadidos por visitantes vindos do lado de cá da fronteira. A situação dificilmente deve mudar no Governo de Javier Milei, cujo mandato vai até dezembro de 2027. A língua portuguesa, que era muito ouvida pelas ruas da principal porta de entrada do país, a capital Buenos Aires, agora está mais acanhada nos bares, parques, museus e lojas. De acordo com dados da plataforma especializada em turismo Panrotas, o número de brasileiros que visitaram a Argentina no início de 2025 caiu 44% em relação ao mesmo período do ano anterior. Isso representa uma queda brusca, pois tradicionalmente o Brasil lidera o ranking de missão de turistas para o país sul-americano.
Fim de semana com susto na conta
Em julho deste ano, o casal de namorados Antonio Giordano, publicitário, e Arthur Amaral, programador, saíram de São Paulo para visitar a capital argentina e se espantaram com os preços. Como seria apenas um final de semana, não fizeram muitas pesquisas. Chegando lá, acharam tudo bem caro. “Na volta para o Airbnb, passei num quiosque (quebra-galho de bairro que geralmente tem valores mais acessíveis), comprei uma água e uma latinha de refrigerante e deu quase R$50 reais. Os jantares também estavam bem caros, não sei se foi por conta dos lugares que fomos, mas em média eram uns R$300 a R$500 reais para duas pessoas”, conta Antonio. Alguns restaurantes estavam na mira do casal de viajantes, mas ficaram de fora por conta dos preços, como o japonês Mutsuhito Omakase e o Don Julio (considerado em 2025 como o melhor restaurante de carnes do mundo pelo 3º ano consecutivo pelo World’s 101 Best Steak Restaurants). Cardápios com preços bem salgados e filas enormes afastaram os dois. Antonio diz que, mesmo fazendo cortes nos planos, acabou gastando o dobro do que havia imaginado para a viagem – só de alfaiares, o tradicional doce da cidade, gastou R$300. “Buenos Aires é um encanto, uma cidade muito charmosa que respira cultura, gastronomia, arte, mas por enquanto recomendaria outro destino, até pelo menos a situação econômica voltar a ficar interessante para todos, incluindo turistas”, disse.
O casal Arthur Amaral e Antonio Giordano em frente ao edifício Banco Argentino Uruguayo (E) e na Casa Rosada (D), sede do Governo Argentino, ambos em Buenos Aires, em julho de 2025
Segundo Angela Teberga de Paula, professora no Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília (CET/UnB) e doutora em Turismo e Hospitalidade pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), a queda de viagens começou em 2017, ainda no contexto do Governo Macri, e atingiu sua maior crise em 2021, por ocasião da pandemia da Covid-19. O número de viagens, explica a pesquisadora, voltou a subir entre 2021 e 2023, período em que o país reabriu as fronteiras para o turismo internacional, impulsionado pelas políticas do Governo Fernández, e em razão da desvalorização do peso argentino. A queda do fluxo de turistas estrangeiros, como um todo, não somente de brasileiros, desde o ano de 2023, é um efeito direto da política de ajuste fiscal e de câmbio do Governo Milei, com uma valorização da moeda local, acompanhada de inflação controlada e dolarização dos preços dos produtos locais. “Essa política de câmbio, que sustenta o dólar barato, favorece que a classe média alta argentina possa inserir-se no comércio internacional, que inclui o turismo, e que o país importe produtos estrangeiros de maior valor agregado. Isso tem como resultado, para além do enfraquecimento do turismo receptivo, uma desindustrialização nacional e a redução dos postos de trabalho locais. Essa foi uma política bastante utilizada pela Argentina e pelo Brasil, com os Presidentes Menem e Fernando Henrique Cardoso, respectivamente, na década de 1990, quando os países optaram pela cartilha macroeconômica neoliberal, influenciados pelo Consenso de Washington de 1989”, observa Angela.
Gráfico mostra queda de turistas na Argentina nos últimos dois anos. Fonte: Secretaria de Turismo, Ambiente e Esportes da Argentina
De moeda forte a gastos controlados
O fim da “farra em terras argentinas” já vinha sendo notado há alguns anos pelo arquiteto Diego Serra, que esteve na capital vizinha em 2006 com a mãe e a tia e em 2018 com o então namorado (atual marido). “(Em 2006) a gente ficou hospedado em um hotel legalzinho perto da rua Florida (nota: movimentada rua portenha), e na época acho que o peso valia metade do real e a cidade funcionava nessa lógica. A gente sentia que nossa moeda valia o dobro, principalmente para alimentação. A gente comia muito bem e pagava muito pouco, quando usámos táxi não era caro, a sensação era que era uma viagem barata, que a gente podia fazer extravagâncias”, afirma o arquiteto, que aproveitou essa primeira viagem para comprar roupas, perfumes e artigos em couro. Ele lembra ainda que encontrava muitos turistas brasileiros em todos os lugares, como restaurantes e comércio. “Inclusive quando saímos de Buenos Aires e passamos no Tax Free do aeroporto para receber a parte dos impostos de volta, basicamente era só brasileiro na fila”, exemplifica.
Já em 2018, o cenário já havia mudado. Naquele ano, achou que o poder de compra do real em Buenos Aires já não era tão atrativo assim. O casal percebeu que a cidade estava muito cara. “Comemos bem, fizemos tudo que queríamos, mas não compramos nada, roupa, perfume, nada. Fomos a museus, restaurantes, curtimos a cidade, mas nada de consumir pra aproveitar uma economia em relação aos valores de produtos. A sensação que a gente tinha quando convertia era tipo ‘poxa, isso é o que eu pago no Brasil em um restaurante no mesmo padrão’. Foi uma viagem que a gente gastou como se tivesse gastando em real, e ficou a impressão de que a cidade estava cara pra eles, pros argentinos, que aqueles valores eram altos. Já não era o boom de brasileiros”, completa Diego.
Diego Serra com a escultura Floralis generica, do arquiteto argentino Eduardo Catalano, ao fundo (E) e em frente ao quadro Femme Allongée, de Pablo Picasso, no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) (D), ambos em Buenos Aires, em 2018. As fotos da viagem de 2006 se perderam com o fim do Orkut
O arquiteto tocou em um ponto importante: a Argentina está cara para quem vive por lá. É o caso do estudante de medicina Caio Moscovits, que é brasileiro e se mudou em 2022 para cursar medicina na prestigiada Universidade de Buenos Aires (UBA). Ele conta que os preços na época eram extremamente acessíveis. O aluguel podia pesar um pouco, mas o resto era bem barato. Ele chegou a pagar entre 50 e 60 pesos de transporte (na época era equivalente a poucos centavos); hoje, a passagem de ônibus sai por uns 600 a 700 pesos. Caio conta que as compras de mercado reduziram consideravelmente, e em quesitos de lazer, as coisas também subiram muito de preço (restaurantes, cafeterias, casas de chá etc.). “Como as opções de lazer ficaram muito caras, tento aproveitar meu tempo livre em casa ou em lugares mais acessíveis ou públicos, como parques ou praças. No entanto, percebi que muitos amigos/familiares começaram a descartar a Argentina como opção turística, e os que arriscaram vir, se depararam com preços extremamente salgados”, diz o estudante, que tem planos de retornar ao Brasil depois de concluir o curso, mas não descarta a possibilidade de viver em Buenos Aires se tiver um salário digno. “O maior problema, nesse sentido, seria a atual condição do residente médico: salários extremamente baixos, remoção dos direitos trabalhistas (passaram a considerar a residência como bolsa de estudos), longas horas de trabalho e pouco reconhecimento. São fatores que me afastam um pouco da ideia de seguir aqui depois de formar”, afirma Caio.
O custo de (tentar) viver em Buenos Aires
Quem está praticamente com as malas prontas para voltar ao Brasil é a artista visual, curadora e gestora cultural Stella Carrozzo (sim, irmã do autor da matéria). Ela compara o atual custo de vida em Buenos Aires a cidades europeias. “Então, apesar de Buenos Aires (onde vivi por mais de 10 anos, em duas ocasiões diferentes — a última delas, por 8 anos) ser uma cidade lindíssima, fatores decorrentes das medidas econômicas deste governo que acarretaram o aumento dos preços, o desemprego e o consequente aumento na violência, somados ao descaso com a cultura no país — cortes radicais do orçamento da pasta e previsíveis consequências como impossibilidade de manutenção de muitas instituições culturais públicas e a quase que completa ausência de editais governamentais de fomento à produção artística — me fizeram tomar a decisão de voltar ao Brasil”, observa a artista.
A percepção desta queda no número de brasileiros nos últimos anos — tanto estudantes como turistas — foi bem radical, afirma Stella. Nas ruas mais movimentadas e nos pontos turísticos de Buenos Aires, o português era escutado com frequência. Muitos estudantes brasileiros moravam na Argentina. “Eu nadava numa academia ao lado da faculdade de Medicina e ia caminhando para lá; no trajeto, eu encontrava vários grupos de brasileiros. Poucos meses depois do início do governo do atual presidente, a debandada foi geral — claro, os aluguéis subiram assustadoramente, a alimentação, o transporte público, tudo. O pior é ver este governo mentir descaradamente afirmando que controlou a inflação. Claro: ninguém tem mais dinheiro para comprar nada e então o consumo cai de forma bem acentuada”, afirma. Segundo dados de fevereiro da Agência Brasil, a redução da inflação na Argentina registrada nos últimos meses foi motivada pela queda da atividade econômica do país, que deve fechar o ano passado com recessão de 3% a 4% do Produto Interno Bruto (PIB). E em matéria da Folha de S.Paulo do final de 2024, dados apontavam que a Argentina teve a maior queda no consumo em pelo menos dez anos.
Brasil lidera o número de turistas no país vizinho. Fonte: Secretaria de Turismo, Ambiente e Esportes da Argentina
O que pode fazer os brasileiros voltarem?
Em entrevista em julho deste ano à CNN Brasil, o secretário argentino de Turismo, Ambiente e Esportes, Daniel Scioli, afirma que o país quer alavancar o turismo. Scioli esteve em São Paulo para divulgar passagens promocionais a turistas brasileiros para Buenos Aires e outras cidades argentinas. Em julho, a principal companhia aérea de lá, a Aerolíneas Argentinas, passou a oferecer preços promocionais para Buenos Aires — na ocasião, achei passagens de ida e volta em voos diretos saindo de Salvador por R$1.470. Antes do anúncio, tarifas de R$2 mil já podiam ser consideradas muito boas.
Mas nem só de discursos oficiais e promoções aéreas se faz a retomada de um setor tão importante quanto o do turismo. Quais mudanças no cenário político e econômico na Argentina fariam o turismo brasileiro voltar a crescer por lá? Quem responde é a professora Angela Teberga de Paula. Segundo a pesquisadora, do ponto de vista econômico, a Argentina precisa seguir na contramão de uma política cambial liberal, garantir a estabilidade da economia, promover incentivos que tornem mais acessíveis os serviços turísticos de hospedagem, transportes e atrativos, junto do retorno de um câmbio mais favorável para o brasileiro. “Do ponto de vista político, é necessário fortalecer a cooperação comercial e turística entre os países do Mercosul, e especificamente a relação Brasil-Argentina, duramente atacada pelo atual presidente argentino. Milei repetidas vezes criticou o presidente Lula, por considerá-lo um inimigo ‘ideológico’, e declarou que o bloco é um entrave para o fortalecimento da economia argentina”, pontua Angela.
Pelo visto, é melhor apostar em outros destinos aqui na América Latina, ainda mais com anúncios de novos voos e frequências saindo do Brasil em 2025, como São José (Costa Rica), Lima (Peru), Santiago (Chile) e Bogotá (Colômbia). Agora em julho, a A LATAM anunciou que vai ampliar em cerca de 20% o seu número de voos internacionais operados a partir do Brasil até janeiro de 2026, em comparação com o mesmo mês de 2025. E a Gol anunciou que teve a maior operação internacional de sua história para a alta temporada de inverno. Turistas querendo viajar para o exterior existem. O fundamental é pesquisar e ver o destino que mais se encaixa no bolso.