Para dentro do cartão-postal

José já ia caminhando pela beira do asfalto há dois dias e meio quando o caminhão parou ao seu lado. Vai pra onde? Pra Salvador, respondeu com a voz para dentro a pergunta vinda do alto. Sobe aí, disse Lucibal, abrindo a porta. 

 
 

O caminho todo era silêncio e o amarelo estourado, do sol e do chão duro do sertão, até as árvores retorcidas eram amarelas, o rio meio seco enganava o olhar e era meio amarelo escuro, terroso. O adesivo de um sol sorridente no vidro era amarelo desbotado. O motorista puxou conversa. Meu nome era para ser Lucival, mas quando nasci meu pai foi bêbado me registrar e disse tudo embolado. Minha mãe descobriu um mês depois, mas aí já era tarde, o cartório não quis trocar. José fazia que sim com a cabeça, um movimento pela metade, um sim comido pelo ressabiar. Prendia a mochila entre as duas pernas. Lucibal tentava assuntar, mas no fim achou que era mais provável obter respostas se gritasse pela janela em direção aos urubus que planavam com o bafo quente que subia. 

José fedia, isso Lucibal percebeu só de olhar o moço. Como consegue alguém andar tanto tempo sem um banho?, pensava. Nas primeiras horas com o companheiro de viagem, poucas informações foram arrancadas da boca do caminhante. Tinha 27 anos, vinha de uma roça perto de Irecê, estava indo para Salvador. Vai encontrar alguém lá? Silêncio. O motorista guardou para si a curiosidade de saber o que ele ia fazer na capital.

A verdade é que José queria conhecer o lugar de onde tinha partido a única carta que recebera e que receberia até o fim da vida. Um cartão-postal mandado por Jussara, que conseguiu chegar pela Providência Divina na casa de pau a pique quando ele tinha 15 anos. Jussara tinha se mudado com a família para Salvador uns tantos meses antes, mais ou menos quando José deixou de estudar para ajudar o pai na lida com a mandioca para vender aos sábados na feira. Aquele pequeno pedaço de papelão, dobrado em quatro, não trazia o endereço da moça nem pistas de onde poderia ser encontrada. Dizia apenas, no cantinho de cima, em letras miúdas, Salvador, Bahia. Pois era lá que ele queria chegar. Conversar com alguém e perguntar: você sabe onde mora a Jussara de Irecê? Sabia que a cidade era grande, maior que a sua, mas não custaria nada arriscar, de repente na praça poderia conseguir uma informação útil.

A noite logo chegou e Lucibal encostou em um ponto de parada. Estacionou o caminhão perto de outro, respeitando o espaço da privacidade. Os dois desceram. Comeram dois salgados cada um na lanchonete, um lugar que bem poderia ser cenário de filme de beira de estrada, luz branca, um bêbado no canto. Lucibal fez questão de pagar, gentileza que José aceitou sem fingimentos.

De volta ao caminhão, o motorista disse: tem um problema, a cama aqui atrás é de solteiro, mostrando com o nariz o colchão forrado com um lençol branco com miúdas flores azuis. Você pode dormir sentado aí no seu canto, mas somos magros, dá nós dois aqui atrás, é bastante largo, disse, apontando para o espaço acolchoado atrás dos assentos. José olhou para fora, viu o asfalto sujo, depois voltou as vistas para dentro e desejou aquela cama que parecia com os hotéis chiques de novela, tinha um grande travesseiro, uma pequena luz e até uma cortina. Pensou nas duas últimas noites, dormidas ao relento, no chão, sem um pedaço de pano para cobrir. Cabe eu aí? Cabe, chegue mais. 

E os dois se chegaram e se deitaram. 

Mas a ideia era boa só na cabeça mesmo. Não eram gordos nem muito altos, mas logo o desconforto chegou para se juntar à dupla. Em um balé não orquestrado, viraram quase simultaneamente de lado e o anfitrião se encaixou nas costas do convidado. Lucibal, esperando uns segundos para avaliar a receptividade do outro, passou o braço por cima da barriga do viajante. Posso, perguntou? José não respondeu nem que sim e nem que não, interpretado pelo outro como uma afirmativa. Lucibal começou então a deslizar os dedos pelo antebraço de José, fazendo caminhos nos poucos pelos escuros daquela pele escura.

Aquilo fez com que José se lembrasse de Josevaldo, seu quase parceiro de nome, com quem havia feito muitos e muitos caminhos com as mãos um no corpo do outro, até o dia que Josevaldo se engraçou com Maria e ele, queimando de ciúmes, mas também de desejo pelo corpo feminino, encontrou abrigo em Jussara. Saiam juntos os quatro no sábado à noite, mas só ficava naquilo mesmo, de papo na mureta da igreja, porque a pedalada de volta até a roça era pra mais de hora e isso desanimava José a terminar a noite no bar do Tonho. Esses encontros duraram um ano, até que a família de Valdo partiu para São Paulo, dois meses antes de Jussara fazer sua mala e ir embora também.

Desde então deixara de percorrer caminhos nos braços dos outros. Mas agora, juntos, dividindo aquele espaço abafado na boleia do caminhão, era como se os antigos amores rondassem pelo teto coberto pelo tecido cinza. E assim adormeceram. Lucibal pensando em José, imóvel em seu corpo, e José pensando em Josevaldo e em Jussara, Deus sabe onde estariam.  Lá fora, músicas da banda Calypso abafavam as vozes que vinham de longe. Adormeceram um sono sem sonhos, naquela primeira e última noite juntos.

No dia seguinte, Lucibal abriu os olhos e não encontrou mais seu companheiro de colchão. José acordou quando as corujas ainda chirriavam. Abandonado pelo parceiro desconhecido, comeu quatro bolachas água e sal e um pedaço de goiabada. Equilibrando um copo plástico com café preto em uma das mãos, botou o motor pra funcionar e partiu. Dez minutos depois, avistou a mesma figura do dia anterior, a mesma magreza andando na beira da mesma estrada. Passou reto. Não olhou pelo retrovisor. E assim seguiu viagem, deixando uma cauda de poeira e silêncio em suspensão.

 
 

E também tomou seu rumo José. Um longo caminho amarelo de solidão, de sol e de chão pela frente, a ser percorrido a pé. Por um instante, teve um pensamento, suspirou e desejou, desses desejos bem desejados, ter dinheiro e pagar uma passagem de avião, para piscar os olhos e chegar logo em Salvador. Mas nem sabia se havia aeroporto na região, tudo que passava voando eram pássaros e bem no alto, lá pra cima, uns riscos brancos que, rasgando o azul, iam do nada ao lugar nenhum, levando pessoas apressadas para chegar onde tinham de chegar. Você tem medo de avião?, perguntou uma vez Josevaldo enquanto via uma linha no céu e desenhava caminhos em seu braço. E eu lá sei? Nunca andei nesse bicho. Deve ser estranho, sei lá, eu gosto de andar, saio daqui e vou pro centro pensando, vendo os calangos, sentindo o sol na pele. Acho que Deus quis assim, pelo menos quis assim pra mim.

Salvador chegou depois de dois dias. As pessoas passavam sem olhar no rosto do sertanejo, que achou a cidade muito, muito maior que Irecê, com mais barulho e mais palpitação. Perguntando aqui e ali, chegou no lugar da foto, uma praia chamada Rio Vermelho. Tirou o cartão-postal dobrado no bolso e comparou. A foto era tomada de gente vestida de branco e pequenas embarcações coloridas. Agora, naquela tarde nublada com manchas acinzentadas no céu, os barcos de madeira repousavam perto da mureta de pedras pretas. O mar muito mexido daquele dia meio chuvoso, bom para o plantio, deixou os pescadores em terra firme. O recém-chegado sentou na balaustrada branca, olhando a faixa de areia deserta, muito diferente da imagem que recebera anos antes. Aprendera a ler, lia devagarinho, mas lia. Querido José, você me faz falta. Olho o mar e sinto saudade de casa. Espero que um dia você também olhe esse mar. José olhava e sentia saudade de casa e de Jussara, do jeitinho que ela havia escrito. O barulho dos carros passando na pista logo atrás de suas costas nublava seus pensamentos. Pensou que já não se lembrava direito do rosto da remetente. Não sabia onde encontrá-la, nem poderia descrever suas feições para alguém. Chegou a pedir informações a algumas pessoas, mas ninguém conhecia uma mulher de 27 anos de Irecê. 

Cansado, José pegou sua mochila e partiu no rumo contrário ao que fizera horas antes. Sabia que aquele amor tinha se perdido pelo mundo, não só em Salvador, mas pelo mundo, pois se quebrou e um pó vermelho de dentro do coração saiu voando. A viagem de volta seria ainda mais cansativa, pois as bolhas nos pés faziam o andar ainda mais pesaroso e o peito pesava o peso da melancolia. Quem sabe poderia encontrar Lucibal, que àquela altura já estava com o caminhão cheio indo para Santos. Mas disso José não sabia. Cada carreta que passava José olhava, e olhava a poeira indo embora até sumir, e olhava para frente, para o passado com Jussara.

Quando chegou em Irecê, perguntaram na roça: como foi a viagem? Como é Salvador? O rapaz, cansado, discretamente enchia o peito de tristeza e dizia: Salvador é vazia.

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