Íris Lettieri: o adeus à voz dos aeroportos brasileiros

Por décadas, a voz feminina aveludada anunciava as chegadas e partidas em alguns dos principais aeroportos brasileiros. Em uma época sem tantas tecnologias, era fruto do talento da jornalista e locutora carioca Íris Lettieri. Reconhecida nacionalmente por onde passava, Íris faleceu na semana passada, aos 84 anos, vítima de um infarto. Chegava ao fim não só a voz clássica como também a trajetória de uma mulher brilhante e que guardava curiosas contradições, como poderá ser visto no fim deste texto.

Mas calma que entre o começo e o fim tem o meio.

 
 

A inconfundível voz de Íris

Será que você está ligando o nome à pessoa? Veja aqui este vídeo para poder ouvir a voz da carioca.

 
 

Eu tenho vívidas memórias dessa voz quando, nos anos 1980, esperava por longas horas no aeroporto do Galeão, no Rio, para pegar o voo até Roma, no enorme jumbo 747 da Alitalia. Para adultos talvez fosse uma sonoridade que remetesse a algo sensual. Para mim, uma criança, tinha uma pitada mágica, de uma atmosfera inebriante. Se eu fechar os olhos parece que consigo rever aqueles corredores gélidos, meio escuros e meio desertos do então principal aeroporto internacional (os voos para a Itália saíam tardíssimo). A voz de Íris parecia se encaixar perfeitamente com aquele cenário de encanto, com a expectativa de um pequeno passageiro — ainda não panicado — que amava viajar de avião. Era como a narração do início de uma aventura.

Mas vamos falar um pouco mais sobre Íris, afinal aqui quem tem de reinar é ela. Nascida em 1941, no Rio de Janeiro, Íris Lettieri Costa era, segundo o jornal O Globo, filha de José Avelino Costa, um locutor da antiga Rádio Cruzeiro do Sul; e de Joselita Lettieri, uma professora de piano, canto e dicção. Ou seja, o talento veio de berço, como dizem. Aos 16 anos, acompanhando a mãe em um concerto na Rádio MEC, a jovem, ao ver um gravador, perguntou se poderia utilizá-lo. Ela leu então uma notícia e encantou quem estava por lá. Nascia ali a paixão pelo ofício.

Íris foi a primeira mulher a trabalhar como locutora em telejornais, segundo o portal G1. Começou no rádio como locutora da Tupi, ainda no fim dos anos 1950. Depois, participou do jornal Tele Globo. Em 1983, fez parte da primeira equipe do jornal da Manchete, mas a fama foi sacramentada quando, em meados da década de 1970, antes mesmo da inauguração do Galeão, foi convidada para gravar os anúncios dos voos. E ficou conhecida nacionalmente mesmo, pois pessoas do Brasil inteiro passavam pelo Galeão, que era o principal ponto de distribuição de voos nacionais. Depois da estreia em solo carioca, a inconfundível voz se espalhou para outros aeroportos, como os de São Paulo (Guarulhos e Congonhas), Manaus e Foz do Iguaçu.


Falsas expectativas

Em suas entrevistas, a alegre jornalista sempre contava da festa que as pessoas faziam quando a reconheciam nas ruas. Íris dizia que às vezes era inevitável uma certa expressão de decepção ou surpresa, pois, segundo ela, muitas pessoas achavam que por trás daqueles alto-falantes estava “um mulherão”, quando na verdade ela era “baixinha e gordinha”, mas palavras da própria Íris em diversas entrevistas que deu ao longo de sua carreira. “A intenção não era a de sensualidade, era transmitir tranquilidade”, disse certa vez à TV Globo.

Mas as coisas vão mudando, é claro, pois a roda da história sempre gira. Em 2009, a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária(Infraero), então controladora de todos os aeroportos do Brasil, anunciou que o serviço de anúncios seria suspenso em território nacional para evitar a poluição sonora. Hoje, quem precisa de informações sobre os voos deve consultar os painéis com os dados de chegadas e partidas, procurar funcionários das empresas aéreas ou checar nos aplicativos. Mas a decisão da Infraero não afastou Íris do público. Alguns anos depois, em 2014, ela estreou em novo local, no BRT Transcarioca, sistema de transporte do Rio de Janeiro. A famosa locução passou a anunciar as paradas ao longo do corredor expresso.

 
 

E eu não estou sozinho na memória afetiva do passado aeroportuário. “A minha lembrança com a Iris talvez seja a minha primeira lembrança de minha paixão pela aviação, quando eu era criança e ainda não tinha andado de avião. Aquela voz já era famosa no Rio e sempre foi muito conhecida até hoje”, conta o produtor de eventos e consultor de hospitalidade Antonio Queiroz. Hoje em dia, Antonio acha que tais anúncios não cabem mais no atual cenário da aviação mundial. Mas não pensem que as caixas de som foram silenciadas de vez. Enquanto respondia a esta entrevista, o produtor estava no aeroporto de Nairóbi, no Quênia, e a todo momento tinha um anúncio sonoro de algum voo. “Não me incomodou, mas talvez porque o aeroporto de Nairóbi não seja tão movimentado como os aeroportos na Europa ou Ásia. Não sinto falta dos anúncios. Hoje todos eles são feitos de forma muito mais rápida digitalmente. Eu adoro, acabei de receber pelo WhatsApp uma mensagem dizendo que meu embarque já foi iniciado, é muito bom isso, a gente tá com o celular o tempo todo, dificilmente procuro informação nas telas de voos”, relata.


Detalhes tão pequenos de uma voz

Por conta da morte de Iris, o jornal O Globo fez uma matéria em homenagem à locutora. Algo que eu não sabia: ela tinha medo de voar! Pois é, uma panicada anunciando os voos. “Senhoras e senhores passageiros, muita calma nessa hora” seria um texto que eu amaria ouvir sendo declamado com a famosa voz. Outros dados curiosos levantados pelo jornal carioca. A jornalista processou a banda americana Faith No More por colocarem a voz dela na música Crack Hitler no álbum Angel Dust (1992) sem sua autorização. Outro fato interessante: uma vez ela foi contratada por uma noiva que se casaria com um piloto de aviões. A função de Iris? Anunciar aos convidados o salão para onde deveriam se dirigir. Outra: Lettieri é a protagonista do disco Isto, do renomado artista brasileiro Cildo Meireles, obra em loop apresentada na mostra Múltiplos Singulares, em 2019. Em Isto, Íris aparece falando frases como “Isto está sumindo”, “Isto está desaparecendo”, “Isto está se apagando”, “Isto está acabando”. O projeto artístico levou 42 anos para ficar pronto. “A voz da Íris é uma espécie de bem cultural imaterial do Brasil. É impressionante como a voz se mantém exatamente igual”, disse Cildo na exibição da obra em uma galeria carioca. E Íris era realmente internacional: dizia seu texto em diversas línguas, como espanhol, italiano e inglês, mas só sabia falar nosso português.

Mais um fato curioso: em 2017, quando nasceu o rivotravel, eu cheguei a mandar um e-mail para Íris perguntando se ela toparia dar uma entrevista para o site – e olha que eu nem sabia da aerofobia dela. O interesse jornalístico era pelo papel que ela desempenhou por décadas na história da aviação brasileira. Nunca tive resposta dela, nem mesmo uma negativa. Não acho que tenha sido uma grosseria. Só lamento não ter tido a honra de pegar o telefone, ligar para o número de Íris e ouvir “Alô, Salvatore, vamos começar?”.

Uma panicada que tranquilizava as pessoas nos aeroportos. Isso sim teria sido uma bela, bela história para contar.

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