O pai do medo

 
 

Sentada na cadeira ao lado da janela, Lucília olha para fora, ignorando o próprio reflexo no vidro. Vê a serra, o mato, a névoa no horizonte e tudo mais que forma a vastidão possível de ser alcançada com a luz do sol das cinco da manhã. Faltam ainda duas horas para o trem chegar a São Paulo — três horas até Lucília germinar do subsolo da avenida Paulista, onde trabalha das oito da manhã às seis da tarde, de segunda a sexta, como faxineira em um cartório. Entre uma piscadela e outra (ela dorme menos de quatro horas por noite para dar conta dos afazeres da casa), pensa no Castelo de Caras. Sabe que fica na França, apesar de não saber onde a França fica. Lá as pessoas acordam quando querem e tomam o café com leite na cama, imagina. Olha pro céu e vê uma enorme serpente branca deixada por um avião que vai para Buenos Aires, mas isso ela não sabe.

Nessa mesma hora, Claudine entra em um vagão da linha 7 do metrô de Paris. Ainda faltam 18 estações para chegar ao bairro periférico onde mora com a mãe e as três irmãs. Chegaram da Líbia há quatro anos, deixando para trás a guerra e os homens da família. O frio assusta Claudine. Na estação Staligrad, a estrangeira vê um anúncio de turismo oferecendo pacotes para o Brasil a partir de 990 euros, passagens aéreas e hospedagem incluídas. Claudine olha para a praia na foto e pensa que nunca teve um biquíni. Ela tem 32 anos e não tem sonhos.

As duas pensam em avião. As duas têm medo dessa coisa estranha, mesmo sem terem jamais colocado os pés em um aeroporto. Claudine também tem medo do mar, do mar revolto que atravessou em um pequeno bote a caminho da liberdade. Mas é do avião que ela mais tem pavor.

Elas ouviram quando pequenas que seus pais foram morar bem longe, mas bem longe mesmo, muito depois do que os olhos alcançam. Elas não lembram do rosto daqueles que batiam em suas mães, mas lembram de olhar pro céu e ver um avião no alto e pensar que um dia ele poderia pousar bem ali no pedacinho de terra atrás da casa onde cresceram. Mas os anos foram passando e a esperança se tornou medo, medo de que um dia aquele homem pudesse realmente voltar. Viam suas mães menos tristes, até mesmo dando uma risada ou outra.

Um dia Lucília perguntou a um homem elegante do escritório onde trabalha: “como é um avião?” e ouviu como resposta “é algo maravilhoso, que te leva onde você quiser”. Lucília queria estar de volta ao útero da mãe, mas como em um outro revés do parto, queria ir diminuindo e diminuindo e diminuindo até virar um nada.

Claudine um dia juntou um dinheiro e foi ao cinema, o único de seu bairro. Em uma das cenas, que mostrava uma loira alta e bonita e magra entrando em um avião, ela correu as mãos ao rosto e mesmo assim fechou os olhos. Na saída do cinema, sentiu-se zonza. Pensou no pai. Depois de tantos anos, pensou no pai. “Que esteja bem longe”, disse para si mesma. E que nunca mais pegasse um avião pra voltar.

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