O medo que os homens têm de ter medo — parte 1: só mulheres sentem pânico de voar?

O título que abre esta matéria pode ser enorme, mas acho que abarca bem a complexidade do tema.

Vamos pelo começo. A pergunta “só mulheres sentem pânico de avião?” é um tanto quanto absurda. Mas explico. Resolvi escrever sobre o assunto ao perceber, depois de mais de dois anos de rivotravel, uma certa tendência: recebo muito mais comentários no site e mensagens no Instagram de panicadas. Aí então me perguntei: onde estão os panicados? Será que eles não existem? Não frequentam meu site? Ou será que o problema está mais embaixo: será que não se sentem abertos e confiantes o suficiente para expor o medo de voar?

 
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Fui então analisar o que os leitores e leitoras das matérias que tratam diretamente sobre a aerofobia me escreveram e descobri dados bem interessantes. Nesses textos específicos do site, 85,6% dos comentários eram de internautas do gênero feminino, contra 14,4% dos homens. Resolvi ir além. Me lembrei de uma matéria sobre o rivotravel que saiu no portal G1, em 2017, logo quando lancei o site. Fui olhar o que as leitoras e leitores tinham escrito. Resolvi dividir os comentários em positivos e negativos. Entre as mulheres, todos os recados (sim, 100%) eram positivos, falavam da importância de tratar um assunto que aflige tantas pessoas e dividiam com os demais internautas as próprias angústias em relação ao tema. Já entre os homens, esse número caía para 43% — os demais 57% “desciam o pau em mim”, questionando o meu medo de voar ou mesmo minha virilidade. Ou seja, os internautas estavam presumindo que, por assumir um medo, eu era “menos homem”. Duvida? Vou separar alguns aqui embaixo — e olha que vou excluir os mais “pesados”, porque não somos obrigados, né?

“Isso tudo é frescura”;

“Um verdadeiro idiota!!!!! Se tem tanto medo de viajar de avião, simples assim, não viaje!!!!! “

“frescurite total, hein?”;

“Acho que as pessoas — especialmente blogueiros e jornalistas — quando não têm assunto, inventam historinhas de depressão, pânico, ansiedade ou fobias para ter motivos para escrever e publicar sobre isso”;

“xi…. São Paulino detectado!” (Nota: os torcedores do São Paulo têm a “fama” de serem gays).

Bem, é isso. Como os homens conseguem ser cruéis e pouco amigáveis com a dor do outro, não é mesmo?

Uma outra motivação que tive para escrever esta matéria foi ter visto o maravilhoso documentário “The Mask you Live in” (“A máscara na qual você vive”, em tradução literal. Tem na Netflix — pelo menos até a data de publicação desta matéria —, com legendas em português). O filme, com direção de Jennifer Siebel Newsom, é sobre (entre outros assuntos) a masculinidade tóxica. Segundo o ótimo artigo “Masculinidade tóxica: comportamentos que matam os homens”, de Guilherme Nascimento Valadares, editor-chefe do (igualmente ótimo) site Papo de Homem, essa tal masculinidade “baseada no medo, que busca se provar “macho” a todo momento — estimulando violência, fechamento emocional, homofobia e obsessão com dinheiro, sexo e poder — é tóxica”. E ela atinge, em maior ou menor grau, todos os homens, não importa raça, credo, orientação sexual ou de gênero. Nesse mesmo artigo, Guilherme cita um dado alarmante da Associação Norte Americana de Psicologia, segundo o qual estima-se que 80% dos homens nos EUA sofrem de alexitimia, uma condição caracterizada pela dificuldade em identificar e expressar os próprios sentimentos.

Uma interessante pesquisa coordenada pela ONU Mulheres no Brasil revela alguns dados que podem ser úteis aqui. Dos homens entrevistados, 56,5% deles gostariam de poder falar mais sobre sentimentos e dúvidas. Ainda: cerca de 45,5% dos homens gostariam de se expressar de modo menos ríspido ou agressivo, mas não sabem como. E 66,5% dos homens não falam com amigos sobre medos e sentimentos. Sintomático tudo isso, não?

 
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Ixi, acabei misturando as coisas todas. Me perdoem, mas o assunto é mesmo complexo e toca fundo no homem que sou — e o debate é extremamente necessário. Comecei pelos comentários do rivotravel e do G1, passei pro documentário, pulei para o artigo do site Papo de Homem e acabei caindo na pesquisa coordenada pela ONU Mulheres. Tá uma coisa bem “voo-dos-anos-setenta”, com mil escalas, tipo Porto Alegre — Manaus com paradas em Curitiba, São Paulo, Rio, Brasília, Salvador, Natal e Teresina (sério, era assim). Mas a vida é caótica mesmo, não é?

Permita-me, então, retomar ao documentário que citei anteriormente (que vi com dois sobrinhos e duas sobrinhas adolescentes, fato que rendeu boas discussões pós-sessão). Uma coisa que percebi vendo e ouvindo os relatos do filme é a repetição de certas falas entre crianças, adolescentes, jovens e adultos, todos do gênero masculino: “Tenho dificuldades de falar quando estou em um dia ruim”, “não tenho com quem conversar”, “mostrar emoções é mostrar fraquezas”, “se meu pai me visse chorando acharia que eu não tenho valor”, “preciso lidar com tudo isso sozinho”: todas essas falas eram recorrentes. Ou seja, mesmo em uma realidade diferente (a dos EUA), as falas reforçam o que foi detectado pela ONU Mulheres aqui no Brasil.

Não sei você, cara leitora, caro leitor, mas eu acho tudo isso muito assustador, sinal de uma sociedade doente. Me chamou a atenção o caso de um jovem americano que ouvia sempre do avô, exemplo máximo do “macho man”, frases como: “você tem de ser o mais alto, o mais forte, o mais rápido”. Ou seja: uma cobrança excessiva pela “perfeição” e “virilidade” (e coloco estes termos entre aspas pois seus conceitos são bastante subjetivos). O adolescente em questão não aguentou a barra vinda da família e cortou os cabelos compridos, desistiu das aulas de teatro, mudou a forma como se vestia, passou a “engrossar a voz” forçosamente, começou a namorar a chefe das animadoras de torcida (se relacionar com uma cheerleader é sinal de status por lá) e chegou a se afastar de um bom amigo com trejeitos considerados femininos. Tudo para se enquadrar no padrão esperado pelo avô. A tristeza, obviamente, bateu na porta do adolescente.

Uma enorme gama de especialistas, de várias profissões e correntes de pensamento, foi convidada a contribuir com o material coletado pela cineasta. Um deles sugere uma situação hipotética: “Vá em um parquinho qualquer com muitos meninos brincando de forma pacífica. Quer começar uma briga? Pergunte ali quem é a mulherzinha do grupo”, provoca. Em outro depoimento, vemos um jovem jogador de futebol americano — outro símbolo de status na cultura norte-americana — que disse: “ficaria arrasado se eu ouvisse (de meu treinador) que eu jogo como uma menina”. No fundo, a conclusão que se chega é: ser feminino é algo inferior, algo não desejável, chega à conclusão o documentário.

Segundo o trabalho da ONU Mulheres, “o machismo é a ideia de que existe um sistema hierárquico de gênero no qual o masculino ocupa sempre uma posição superior ao que é feminino. Ou seja, o machismo é a concepção errônea de que os homens são “superiores”às mulheres (…). No entanto, muitas vezes o machismo não é identificado enquanto tal ou é classificado como exagero. Aprendemos a conviver com ele, naturalizando-o, e dificilmente questionamos suas expressões”, afirma o relatório. Um dado bem curioso levantado pela pesquisa, feita com milhares de homens e mulheres no país. Enquanto 81% dos homens consideram que, sim, existe um grande machismo no Brasil, apenas 3% se consideram bastante machistas. Ué, onde se esconde, então, esse machismo restante? No inconsciente dos “cabra machos”, arrisco dizer. Por isso é importante botar o dedo na ferida.

Outro especialista ouvido pelo documentário “The Mask you Live in” mostra como jogos eletrônicos reforçam estereótipos de gênero ao analisar os games ultraviolentos. Nos filmes e séries, a coisa não é menos grave. Existem alguns padrões de personagens masculinos, como o machão (“homem forte, sem frescuras”) que, além disso, é calado, não expõe os sentimentos e está sempre no controle. Os super-heróis também trabalham com arquétipos da hipermasculinidade. Não é de se estranhar que 94% dos assassinatos em massa, segundo dados mostrados pelo documentário, são cometidos por homens.

 
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Mas é preciso deixar uma coisa bastante clara: nem todo homem é um troglodita sem sentimentos! Entre o preto e o branco existe uma enorme gama de tonalidades de cinza (ok, o exemplo é clichê, mas serve perfeitamente). A masculinidade tóxica não é algo recente. Ela vem sendo construída há muito tempo e é passada de geração em geração, na maioria das vezes de forma inconsciente. Isso não quer dizer, por exemplo, que homens que não sabem lidar com os fantasmas interiores sejam piores que outros. Apenas não acessaram, ainda, pontos importantes da própria condição humana. E alguns jamais lançarão luz nessas questões mais delicadas. E assim a roda gira.

Como já deu para perceber, o assunto rende muito pano para manga — e olha que nem entrei ainda na questão que margeia este site: o medo de voar. Por isso, na próxima semana colocarei no ar a segunda parte desta matéria. Nela, abordarei a opinião de especialistas em aerofobia entrevistados pelo rivotravel e também depoimentos de homens que abriram seus corações panicados para falar do próprio medo. Até lá!


Agradecimentos muito especiais ao fotógrafo André Souza, autor das imagens que ilustram esta matéria. Você pode ver mais trabalhos no site do artista. Agradeço também a Augusto Motta e Thiago Fernandes, que não são panicados, mas são amigos do rivotravel e posaram para as fotos.

Quer ler a parte 2 desta matéria? É só clicar na imagem abaixo:

 
 
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