Irrealidades baseadas em fatos reais

Violeta chegou completamente esbaforida ao aeroporto de Brasília. Arrumar a mala no dia do voo é sempre uma péssima decisão que ela toma (nota mental: ser mais precavida). Saiu de casa atrasada, como sempre. Jogou tudo dentro do Uber e torceu para não pegar congestionamentos. Até que o trânsito estava livre, mas o carro parou faltando 300 metros para chegar ao terminal de passageiros. Falta de gasolina. Inferno de greve dos caminhoneiros. E lá se foi ela arrastando o que mais parecia uma geladeira pela calçada.

Na fila do check-in para o voo que partiria dentro de duas horas para Lisboa, o assunto era só esse. “Ah, no meu tempo não tinha isso”, tentava, em vão, puxar conversa uma senhorinha atrás de Violeta. A médica esboçou um breve sorriso, só para não deixar a idosa no ar, e voltou à posição inicial, encarando o balcão. “Próximo”, gritou, meio nervosa, a funcionária da companhia aérea. 

Pronto, bagagem despachada, agora era só procurar uma cadeira com tomada para carregar o celular (olha ali uma dando bobeira!) e esperar o embarque, rumo às merecidas férias. Voar nunca fora um problema, acostumada a viagens de avião desde a infância. Pais separados e morando em cidades diferentes geraram uma passageira frequente. 

Abriu o Tinder. Essa não, essa não, essa muito nova, essa muito velha. Ah, essa. Bonitona, 49 anos, dentes alinhados, gosta do The Cure. Sim, sim, sim. O dedo corre pro lado. E deu match! A paquera virtual vai ficar para depois: já estão chamando os passageiros do voo. Aliás, chamando é apenas modo de dizer. Saudades da época em que de fato anunciavam os voos pelo alto-falante. Um bálsamo para as mais distraídas como ela. Antes, dava até para se dar ao luxo de ficar desatenta, fazendo coisas absolutamente desnecessárias, como olhar o Tinder minutos antes da viagem de férias.

Fila para embarque é aquela coisa. Todo mundo querendo entrar de uma só vez. Classe executiva, gestantes e idosos, um passo à frente, por favor. Ok, viajo de econômica, então só me resta esperar. 

Dentro do avião, as coisas pareciam tranquilas. Aquela banalidade típica, com direito a todos os personagens: a família numerosa querendo mudar de poltronas para ficar toda juntas; a adolescente dark com os joelhos unidos e os pés na poltrona com a cara a um palmo da tela do celular e o fone de ouvido maior do que a própria cabeça; o casal apaixonado que é só sorrisos; o workaholic digitando pesadamente no laptop, praticamente uma versão executiva de um pianista tocando a 5ª Sinfonia de Beethoven; o senhor caminhando no contra-fluxo do embarque, indo de trás para frente no corredor, porque achou que o assento era no fundo. 

 Tudo ia bem até que:

“Caros passageiros. Devido à situação de falta de combustível para aeronaves no aeroporto de Brasília, faremos uma rápida escala técnica em Salvador, de modo a encher os tanques que nos dê autonomia de voo para chegar a Lisboa”, anunciou o comandante, com forte sotaque luso.

Como assim? Como assim?? O avião vai decolar na reserva? Vai chegar em Salvador no ponto-morto? O nervosismo tomou conta de Violeta, que foi logo apertando o botãozinho de chamar a aeromoça. A comissária de bordo chegou com uma cara amarrada. “Oi, desculpa, mas isso de decolar sem muito combustível é seguro?”. “Perfeitamente normal, senhora”, respondeu, já partindo para a os fundos do avião para providenciar um copo-d’água para um passageiro tomar um remédio. Talvez precise eu mesma de um remedinho, pensou Violeta. Mas deixara todo o arsenal de medicamentos na mala despachada. Uma médica de mãos e nervos atados.

Decolagem autorizada, e lá vai o recém-nascido pânico de Violeta correndo na pista junto ao enorme Airbus. Só conseguia pensar no avião que levava o time da Chapecoense e que despencou dos céus colombianos por falta de gasolina. “Só por falta de gasolina”, na voz de Cássia Eller, tomava a mente de Violeta. Maldita música que eu tanto amo. 

 
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O avião está quente. Muito quente. Será que estão economizando combustível? Será que desligaram o ar-condicionado, que nem a gente faz quando o ponteiro do carro já está há horas cravado na reserva do tanque? A mocinha sentada ao lado parece tranquila, toda encasacada. Deve ser coisa de minha cabeça. 

Violeta começou a folhear a revista de bordo da companhia aérea. Melhores destinos no interior de Portugal, venda de perfumes, e maquiagem dicas de compras em Nova York. E, na página seguinte, uma matéria sobre as mais belas praias de Santa Catarina. Santa Catarina. Chapecó. Chapecoense. Melhor devolver a revista ao bolsão, deixando-a junto ao cartão com os procedimentos em caso de emergencia. Hmmm… melhor dar uma olhada no cartão.

Uma sacolejada deixou Violeta aflita. “Estamos passando por uma pequena zona de turbulência”, avisou, com voz calma, o piloto. Ai, meu Deus, pensou a médica. E o combustível? Avisa como tá o tanque, senhor! Tá piscando a luzinha?

O avião se remelexeu todo por uns minutos e depois estabilizou. Será a calmaria que precede a morte, se pergunta Violeta? Calma, calma, calma, repetia mentalmente, como num mantra improvisado. 

A viagem seguiu tranquila até que um forte barulho irrompeu bem atrás do assento de Violeta. Ai, meu Deus!, gritou a médica, gerando olhares assustados dos demais passageiros. Foi só uma pesada sacola cheia de badulaques que despencou do porta-bagagens. Droga de adolescente desastrado. Violeta escorregou na poltrona, morta de vergonha. 

Mesmo não estando sentada na janelinha, Violeta conseguiu ver que já estavam sobrevoando o oceano. Cair no mar deve ser melhor, refletiu. As aulas de natação que fez na adolescência finalmente vão servir para alguma coisa. Mas ela terá de ajudar os demais. Maldita promessa feita na colação de grau em Medicina, no agora longínquo ano de 1991. Fazer massagem cardíaca em cima da asa de um avião afundando não deve ser nada legal. 

Violeta está tão perdida nos próprios pensamentos que mal escutou o comandante anunciando a aproximação do aeroporto de Salvador. 

O avião pousou e Violeta já conseguia respirar sossegada. A escala foi realmente rápida. Mal deu tempo de passar uma água no rosto no banheiro e dar uma lida no livro O Nome da Rosa e o avião já estava novamente se preparando para decolar. Dessa vez, de tanque cheio, para alívio de Violeta. Nota mental: checar como anda a situação do abastecimento de combustível assim que chegar em Lisboa. Depois, procurar o estande da locadora, pegar o carro alugado e partir rumo ao Algarve. Com o tanque bem cheio, ora, pois.