Minissérie relembra papel da aviação na crise da Aids no Brasil
Já estão disponíveis todos os cinco capítulos, na HBO Max, da minissérie brasileira Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente, que lança luz sobre um capítulo pouco explorado da aviação comercial brasileira e quase desconhecido pelos amantes de aviões e aeroportos, como é o meu caso e de pessoas com quem conversei. A história mistura ficção e realidade para retratar como, no fim dos anos 1980, um esquema envolvendo comissários de bordo brasileiros se envolveu diretamente no transporte sem autorização oficial de medicamentos no tratamento da Aids — no caso o AZT — entre os EUA e o Brasil. A produção é uma parceria da gigante do streaming com a Morena Filmes. Leia no fim deste texto uma entrevista exclusiva para o rivotravel de Thiago Pimentel, idealizador e produtor de Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente.
No período retratado na obra, o acesso ao tratamento era extremamente limitado por aqui. O alto custo do remédio e a ausência de políticas públicas eficazes obrigavam pacientes e familiares a recorrer a rotas alternativas, como o caso mostrado na minissérie. Foi nesse cenário que aeroportos e aeronaves passaram a funcionar como corredores discretos para a entrada dos medicamentos e que representavam um fio de esperança para muitas pessoas que precisavam da medicação.
Tripulantes de companhias que operavam voos internacionais assumiram um papel decisivo nesse processo de trazer o AZT para cá. Alguns ex-comissários da extinta Varig relatam que escondiam caixas de remédios em malas pessoais ou pediam a colegas para transportar os frascos durante escalas nos Estados Unidos (segundo a BBC, esse esquema também funcionava em voos vindos de algumas capitais europeias). Todo esse processo é mostrado muito bem em Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente — na trama, porém, a Varig virou a fictícia Fly Brasil. Apesar da mudança, fica evidente para quem assiste e que viveu aquela época que “a grande empresa aérea de bandeira do país” retratada na tela era mesmo a Viação Aérea Rio-Grandense, nome completo da companhia que decretou falência em 2006. Apesar do risco de sanções trabalhistas, muitos aceitaram a missão pelo impacto direto que o gesto representava para quem aguardava o medicamento no Brasil.
Boeing 747 da extinta Varig no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Na minissérie, os comissários trabalhavam na fictícia Fly Brasil
A Varig, principal empresa aérea brasileira da época, mantinha rotas regulares para diversas cidades norte-americanas, o que favoreceu a atuação dessa rede informal de colaboração. Ex-funcionários lembram que cada viagem podia significar a diferença entre a continuidade ou a interrupção do tratamento de dezenas de pacientes. A aflição por conta de inspeções alfandegárias era constante, mas o compromisso com a causa acabou falando mais alto. Vale lembrar também que no começo a doença era chamada de “câncer gay” ou “peste gay” e era um período cercado por muitas incertezas, medos e preconceito. O roteiro, acertadamente, creio eu, não “doura a pílula”, com perdão do trocadilho. Ou seja, o texto aponta o dedo para a raiz do problema e culpa sobretudo o Governo por espalhar mentiras e terror entre a população, além de não contribuir para o tratamento das pessoas infectadas, independente da orientação sexual ou identidade de gênero. Os pacientes estavam soltos, largado pelas autoridades, sem rumo, e tentavam, por meio de uma rede de solidariedade, manter a lucidez e respirar à tona de tanta violência física e simbólica.
O ambiente aeroportuário, com seus fluxos intensos de passageiros, funcionários e cargas, também se tornou peça-chave nessa engrenagem. Os controles existiam, mas a mobilização silenciosa de comissários e apoiadores conseguiu driblar parte da fiscalização. Assim, aviões de carreira passaram a transportar não apenas turistas e executivos, mas também esperança em frascos discretamente guardados, sem dar muita pinta. Muitas das cenas mostram o aeroporto internacional do Rio de Janeiro, mais conhecido como Galeão, que “coincidentemente”concentrava boa parte das rotas internacionais da Varig. A reprodução dos figurinos e objetos de época é muito boa. Hoje, o Galeão não é mais tão ativo quanto décadas atrás, apesar das tentativas institucionais, mas nos anos 1980 era cenário de inúmeros pousos e decolagens para dezenas de vidas ao redor do mundo. Tudo, inclusive, ao som da maravilhosa voz de Íris Lettieri, que nos deixou recentemente (fizemos matéria para o rivotravel aqui).
Lea (Bruna Linzmeyer) e Nando (Johnny Massaro) em cena de Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente
Ao retratar aquela dura realidade enfrentada por pacientes e seus amigos e familiares, a série da HBO não se limita a abordar o impacto da Aids. Ela evidencia como profissionais da aviação, geralmente lembrados apenas por sua função operacional, foram protagonistas de uma poderosa rede extraoficial em tempos de tanta incerteza. A narrativa reforça a importância histórica desses trabalhadores, cuja atuação muitas vezes ficou invisível. Mais do que uma obra dramática, Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente resgata a memória de um período em que o transporte aéreo ultrapassou seu papel comercial. Para muitos brasileiros afetados pela epidemia, cada pouso de uma aeronave internacional significava a chance de sobreviver por mais alguns meses — e, em vários casos, de ganhar tempo até que políticas públicas mais efetivas fossem implementadas.
Veja abaixo entrevista exclusiva para o rivotravel de Thiago Pimentel, idealizador e produtor de Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente.
rivotravel: Como e quando essa história chegou até vocês?
Thiago Pimentel: Há cerca de cinco anos, assisti ao documentário Carta para Além dos Muros, de André Canto, no qual um entrevistado mencionava ter recebido AZT de comissários de bordo que contrabandeavam o medicamento para o Brasil no fim dos anos 1980. A partir daí, decidi investigar e encontrei a matéria do jornalista Leandro Machado para a BBC, intitulada O Contrabando do Bem. Como homem gay, senti que, após a pandemia de Covid-19, seria essencial revisitarmos a epidemia de Aids sob uma perspectiva mais contemporânea.
(Nota: o documentário citado não está mais disponível nos streaming no Brasil, mas pode ser visto na íntegra no YouTube)
rivotravel: Os ex-comissários contribuíram de alguma forma para a minissérie? Como?
Thiago Pimentel: Sim. Leandro Machado, autor da matéria da BBC, participou ativamente do processo de pesquisa da série. Ele compartilhou conosco todo o seu material de apuração e nos ajudou a estabelecer contato com alguns ex-comissários. Além deles e de outros comissários que acessamos diretamente pelo nosso departamento de pesquisa, também entrevistamos médicos infectologistas que trabalharam para companhias aéreas, pilotos e até profissionais da Polícia Federal que atuaram nos aeroportos. Foi um amplo trabalho de investigação e entrevistas que sustentou a construção do argumento da série.
rivotravel: Essa história que deu origem à minissérie é pouco conhecida, mesmo entre os amantes da aviação (como é meu caso). A que você atribui isso?
Thiago Pimentel: Acredito que isso se deva ao preconceito e ao estigma que ainda cercam a epidemia de Aids e HIV. Esses comissários são verdadeiros heróis silenciados, que desempenharam um papel fundamental em nossa história — assim como infectologistas, artistas e tantos membros da sociedade que lutaram por grupos marginalizados. A sociedade brasileira tem uma tendência a apagar ou ignorar capítulos da história que envolvem símbolos importantes para minorias, como a comunidade LGBTQIAPN+.
rivotravel: Como foi o desafio de recriar aeronaves e o aeroporto do Galeão do fim dos anos 1980?
Thiago Pimentel: Foi um processo desafiador e meticuloso. Reconstruímos em estúdio o interior de uma aeronave, respeitando detalhes como o estofado, os hábitos de serviço e os modelos da época. Para isso, tivemos que recorrer a cemitérios de aviões e vendedores de peças de naves fora de atividade. Também realizamos filmagens no MUSAL (nota: Museu Aeroespacial da Força Aérea Brasileira, no Rio de Janeiro) onde ainda temos alguns aviões de época em bom estado de conservação.
rivotravel: Vocês filmaram cenas no Galeão, no terminal que hoje está fechado?
Thiago Pimentel: Sim. Filmamos no terminal antigo do Galeão, hoje desativado, o que nos permitiu dar autenticidade às cenas sem precisar recorrer inteiramente a cenários artificiais. Embora o terminal tenha sido reformado recentemente, na época das filmagens conseguimos acesso a uma grande área do Galeão que estava desativada. Isso nos permitiu recriar os espaços e mobiliários dos anos 1980 com fidelidade histórica e, ao mesmo tempo, manter os custos de produção mais baixos. O Galeão foi fundamental para dar autenticidade às cenas de época.