Pesadelos, comida de avião e pânicos afins

Uma freira fazendo malabares. Um beduíno em busca de sombra enquanto um gondoleiro veneziano canta canções típicas. Julieta na janela de seu quarto em Verona à espera de Romeu, que irá trazer um frango assado para a amada. De repente, os personagens estão em um avião, que começa a cair em parafuso. Todos continuam fazendo as mesmas coisas, como se nada de grave estivesse acontecendo, sem se preocupar com o destino fatal.

 
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Alan acordou antes do fim do pesadelo. Era sempre assim: sonhava que estava em um avião em rota de colisão com o solo, mas despertava segundos antes do trágico fim. Suado, claro. Ensopado. A ponto de precisar tirar a roupa de cama e botar na lavadora. As terríveis imagens surgiam durante o sono sempre na véspera de alguma viagem aérea. Voo internacional, então? Era batata. Dessa vez, o destino era o Catar, onde o jornalista esportivo iria trabalhar na cobertura da final do Mundial de Clubes 2019, entre Flamengo e Liverpool. Qual a relação com religiosas e cidades italianas? Não fazia ideia.

O dia mal começara e ele já estava atrasado. Antes pediam para chegar com duas horas de antecedência ao aeroporto. Agora são três. Daqui a pouco vão sugerir que os passageiros durmam em colchonetes no saguão. Alan tomou um banho gelado rápido, comeu um donut meio ressecado que estava há dias na geladeira e bebeu meia xícara de café frio que sobrara na garrafa térmica da noite anterior. Como o sonho não saia de sua cabeça, já estava novamente suado. Tomou outra ducha ligeira, escovou os dentes com a mesma pressa, pegou a mala — que felizmente já o aguardava pronta, na sala — e chamou um uber. Tradicionalmente passaria para pegar o repórter cinematográfico e o produtor da TV, mas a última demissão em massa na empresa acabou levando à terceirização dos profissionais, contratados diretamente no Catar para o trabalho. “Espero que o inglês deles seja bom, ou então terei problemas", pensou.

No carro, certamente mais velho que o jovem que o dirigia, a conversa ficou resumida a poucas frases. Tudo que o motorista falava era respondido por monossílabos. Não por maldade ou falta de tato. O nervosismo é que estava batendo à porta, praticamente arrombando-a com um pé de cabra. No som, começou a tocar You oughta know, de Alanis Morissette. Alanis, no mesmo álbum, também gravou Ironic, pensou Alan.  A música tinha um trecho sobre um homem com medo de voar que por toda sua vida evitou viagens aéreas. E quando finalmente decidiu pegar um voo, o avião caiu. “Moço, poderia desligar o som? Obrigado”. Alanis Morissette. Seria Alanis o feminino de Alan? E esse “morre sete”? Morreram como? Estariam no fatídico voo da canção?

A suadeira da noite recomeçou. Sentiu o exato momento em que uma gotinha brotou logo acima da orelha e desceu pela costeleta. Era só o prelúdio. Em pouco tempo a camisa já estava molhada nas costas, como se tivesse mergulhado em uma piscina. “Amigo, pode ligar o ar-condicionado?”. Não podia, estava quebrado. Alan escreveu mentalmente a crítica que faria no aplicativo ao fim da corrida. Aliás, melhor não. Negatividade atrai negatividade.

O trânsito estava surpreendentemente tranquilo para aquela manhã de quinta. Chegaram em meia hora ao aeroporto de Guarulhos. Alan agradeceu a viagem como quem é recebido pela rainha no Palácio de Buckingham. “Tenha uma excelente viagem, senhor”, recebeu como resposta. Positividade gera positividade. Não que Alan acreditasse piamente nessas coisas. Mas nunca se sabe…

Com passos decididos – uma encenação para enganar o cérebro que ele fazia sem nem se dar conta –, entrou na fila do check-in. Vendo as fotos de amigos e paqueras (ah, Julia…) no Instagram, acabou nem notando quando chegou sua vez de se dirigir ao balcão de atendimento ao passageiro. Nessa hora, bateu um nervosismo. Sempre batia. Ele pensava que o destino seria selado ali, na emissão do cartão de embarque. “Para onde, senhor?”. “Para minha cama”, quis responder. “Para minha cama”, respondeu. A funcionária, incrédula, tensionou os músculos da face e abriu ligeiramente a boca, espantada com o que, naturalmente, julgou ser um assédio. “Oh, meu Deus,. não, não é isso, desculpa. Estou apenas nervoso. Queria estar em casa. Não com você, você é bonita. Quer dizer, não…”.  Derrotado, passou a encarar o chão forrado por grandes placas de granito brilhante e apenas levantou levemente o olhar quando lhe foi devolvido o documento de identidade. “Boa viagem”, disse, secamente, a funcionária. “Que a energia do motorista do uber prevaleça”, pensou Alan.

Arrastando-se pelo aeroporto, com sua sucessão de lojinhas de souvenirs com preços hiperinflacionados e corredores com luz branca cortante, chegou à fila da polícia federal. Passaporte, aqui o passaporte. Entregou-o para o agente da polícia federal sem trocar uma palavra sequer, com medo de repetir a cena vexatória de minutos antes. O processo durou uns oito segundos. “Ufa, nenhum problema. Mas qual problema teria? Não sou terrorista”. Melhor nem pensar em terrorismo. Vai que atrai.

Próximo passo, detector de raio-x. Destravou a tela do celular e viu que tinha chegado uma mensagem no Instagram, de um colega da TV. “Boa viagem, meu caro. Detone lá no Catar”. Detonar. Bomba. Enfiou irritado o celular no bolso para, cinco segundo depois, ter de tirá-lo novamente e colocá-lo na bandeja de itens pessoais. “Algum objeto perfurocortante em sua mala de mão, senhor?”. Perfurocortante. Que palavra engraçada essa. Melhor seria perguntar se o passageiro portava algo com o qual pudesse dar uma apunhalada em alguém no voo. Nem todo mundo sabe o que é perfurocortante, afinal de contas. Mas apunhalar uma pessoa em altitude de cruzeiro não causa uma boa imagem mental. Alan tratou logo de imaginar o vídeo fofo dos cachorrinhos que recebera no início da semana de uma tia de Ubatuba.

Uma vez superado o posto de controle, era hora de percorrer o enorme corredor em busca de seu portão de embarque, que invariavelmente ficava a léguas de distância. Na sua esquerda, as grandes vidraças ofereciam uma visão aterradora de aviões do mundo todo: Air Canada, American Airlines, South African Airways. Se fosse uma Copa do Mundo, qual seleção cairia ainda na primeira fase? Cair. Melhor olhar pra direita e percorrer com o olhar a infinidade de vitrines do free shop, oferecendo a executivos apressados e famílias em férias uma infinidade de coisas inúteis. Parou uns segundos para admirar uma gravata, em um tom de amarelo que ficaria particularmente bonito na pele negra de Alan. O jornalista pensou em entrar e pedir para experimentar a peça, mas, aos 48 do segundo tempo, resolveu seguir em frente. “Qualquer coisa compro na volta. A menos que o avião caia". Mais suor, dessa vez acompanhado de pequenos espasmos musculares no abdome.

Quando chegou ao portão de embarque, reparou que não havia fila. Vai ter atraso, concluiu. Mal havia sentado na cadeira e começado um exercício calmante de respiração quando ouviu seu nome ser chamado pelo sistema de som. Embarque imediato. Vá ou fique. Morra ou viva. Meu Deus, como odeio essa sensação, suspirou. Escolheu se levantar às pressas e correr. Perder aquele voo significaria perder a final no Catar. Correu tanto que passou direto pela equipe da empresa aérea. “Senhor, o senhor precisa nos dar o cartão de embarque”. A conferencia dos documentos foi feita já na porta do avião. “Boa viagem”, desejou a funcionária. Mais um ‘boa viagem’ para a pasta. Dessa vez uma nota sete em sinceridade, avaliou Alan. Dava para passar de ano sem ir para a recuperação. Bom sinal.

Sentado em sua poltrona de sempre, a 16A (dezesseis letras tinha seu nome completo e “Alan” começava com “A”), colocou os fones de ouvido e iniciou sua rotina de relaxamento, que misturava de uma só vez meditação, exercício de respiração, visualização de cores relaxantes e pequenos alongamentos, tudo isso ao som de mantras tibetanos. “Senhor, os equipamentos de som precisam ser desligados neste momento”, disse uma aeromoça, tocando suavemente o seu ombro. Era sempre assim. Continuou a prática pouco usual, desta vez mentalizando os sons budistas. 

A decolagem se aproximava e a suadeira recomeçou. Aumentou mentalmente o volume dos mantras, mas isso não impediu de sua camisa ficar ligeiramente encharcada nas costas. Quando o avião acelerou, Alan começou a recitar a meia voz os cânticos, para espanto da passageira sentada ao lado. 

“Decolou. Decolou. Decolou. Estou vivo e em plena saúde”. A frase ecoava na cabeça de Alan. O piloto fez alguns anúncios pelo sistema de som, mas Alan não conseguia fixar a atenção em nada. Algo sobre tempo de voo entre São Paulo e Catar, a temperatura externa (alguém tem interesse nessa informação?, pensou) e o jantar, que seria servido em breve. Com o aval da aeromoça, religou o celular e colocou os mantras para tocar novamente. Foi nessa hora que ele reparou  com mais atenção na passageira ao lado. Ela manuseava com grande habilidade uma daquelas bolinhas de borracha para aliviar a tensão, que as empresas farmacêuticas costumavam dar de brinde. “Acho que cairam em desuso, nunca mais tinha visto uma”, pensou. Reparou que a moça, na verdade, estava com uma bola em cada mão. Alternava apertões com movimentos circulares, fazendo o objeto rodopiar pelas palmas das mãos. O vermelho vivo das duas esferas contrastava com o preto profundo do vestido, que sua vez combinava perfeitamente com seus cabelos, sem um fio branco. 

Meu Deus, a freira! A freira malabarista do sonho! 

Alan emitiu um grunhido não tão discreto e levou a mão em formato de punho à boca, mordendo não tão levemente assim o dedo indicador. De canto de olho, sem coragem de se virar muito em direção à vizinha de assento, percebeu que ela usava uma correntinha de ouro no pescoço cuja parte final entrava pelo vestido pouco decotado em direção ao colo. Será uma cruz? Se for uma cruz estou ferrado, estamos todos ferrados, inclusive essa mulher disfarçada de freira, analisou Alan. Será que ela é católica? Será que é mesmo uma freira, só que à paisana? Freiras ficam à paisana? Ou estaria ela fora de horário de serviço? Ou de férias? Freiras tiram férias? 

Desnorteado, pediu licença à freira-ou-não-freira-talvez-nem-mesmo-católica e caminhou em direção ao banheiro. Precisava jogar um pouco de água no rosto e enxugar o suor que descia pelas laterais da testa. O trajeto foi interrompido por uma aterradora visão: um rapaz barbudo com traços árabes fechando a janelinha por onde o sol do início da tarde entrava. Pronto: o beduíno em busca de sombra acabara de se materializar ali, a não sei quantos mil pés de altitude. Nessa hora as pernas de Alan perderam a força e ele sentou-se na poltrona vazia mais próxima. Por azar era na fileira do suposto beduíno, que vendo o nervosismo nada sutil do companheiro de voo perguntou se estava tudo bem. Alan permaneceu mudo, duro, cada músculo do corpo teso. Melhor passar por mal educado ou gringo que não fala português do que acabar descobrindo que o rapaz realmente tem ascendência árabe. 

Alan fechou os olhos um pouco e visualizou uma luz violeta. Era violeta a cor que deveria imaginar? Ou seria outra? Violeta acalma ou estressa? Melhor pensar em Julia. Julia, ah, Julia. Que de colega de trabalho passou para amiga, que foi promovida para confidente, que depois conquistou o cargo de paquera-ficante-não-sei-o-quê. Tão talentosa, uma excelente repórter. O pensamento prazeroso de Alan foi interrompido por uma música alta, que acabou chamando a atenção de umas dez fileiras do avião. Um rapaz magro havia deixado cair o celular no chão, desplugando assim o fone de ouvido e fazendo com que a música saísse pelo alto-falante potente do aparelho de última geração. 

A música era em italiano. Alan nunca tinha estudado a lingua, mas já havia visitado o país inúmeras vezes. Aquilo era italiano. E o rapaz usava uma camisa listrada, branco e vermelho. Tal qual os gondoleiros de Veneza.

A essa altura, Alan já estava certo do fim. Respirou fundo e pensou em toda sua vida, na infância, na adolescência, na faculdade, no trabalho, na família próxima, na família distante, nos conhecidos, nos amigos, nos amores, nas desilusões. Pensou em Julia. Como a amava! E nunca tinha dito isso a ela. E nem poderia mais. Ou poderia? E se ele fosse até o banheiro e ligasse pra ela? Tanto o avião já estava condenado mesmo, uma infração a mais, uma interferência a mais nos sinais dos computadores de bordo não fariam diferença. 

Mais cambaleante do que bêbado às 5h da manhã de quarta-feira de Cinzas, Alan caminhou até o fundo do avião, em busca daquele cubículo no qual mal cabe uma pessoa de estatura mediana. Estava surpreendentemente decidido e calmo. Afinal os dados já tinham rolado em seu sonho e ele quis ignorar os sinais do crupiê. Era fim de jogo para ele, pensou. As fichas já estavam sendo recolhidas.

Claro que havia fila para o banheiro. Sempre há fila para o banheiro.

O serviço de bordo estava começando pelo fundo do avião. “Chicken or pasta? “, perguntou o comissário à adolescente que estava na janela da última fileira, bem perto de onde Alan aguardava sua vez para burlar as regras da aviação. Antes de responder, ela guardou o livro de poesia inglesa com capa dura e detalhes dourados. Pronto, certamente o comissário se chama Romeu e ela vai pedir “chicken”.

“Pasta, please”, respondeu a moça.

“Pasta? Pasta? Eu ouvi bem?”, perguntou-se um atônito Alan. Era para ela pedir pelo frango. E a profecia?

“O senhor não vai entrar?”, perguntou o rapaz com forte sotaque britânico logo atrás na fila, apontando para a porta do lavado entreaberta. “Não, pode passar”, respondeu Alan, que voltou para a 16A.

Chegando em sua poltrona, ele sentou-se e não sabia se ria ou se chorava, e se o riso seria de alegria ou de nervoso e se o choro seria de alegria ou de nervoso. Estava ofegante, isso era fato. O coração acelerado. A moça toda de preto, percebendo a agitação do vizinho de assento, perguntou se estava tudo bem. “Sim, sim, está tudo bem, eu acho. Um pouco de medo de voar. Muito medo de voar, na verdade”, respondeu. “Sei como é, meu ex-namorado também tinha isso”, replicou a moça. Alan só então reparou no sorriso encantador da companheira de voo. “Queria te fazer uma pergunta. Você é católica?”. Madalena (esse era seu nome, Madalena, bem cristão) franziu ligeiramente a testa, estranhando a questão naquela que estava se tornando sutilmente uma conversa entre duas pessoas interessadas uma na outra. “Não, sou ateia”, disse, bastante confusa. 

As quase quinze horas de voo foram ótimas e terríveis. Um vinho surpreendentemente bom para os atuais padrões da classe econômica, algumas turbulências fracas, um papo com a não-freira, um ronco gutural vindo Deus sabe de onde, mais conversa com a doutoranda em arquitetura, turbulências mais fortes, mais informações sobre Madalena (divorciada, fã de ópera e de quadrinhos). Passaram a noite conversando. Alan quase contou a história do sonho, mas recuou no último momento. Muita intimidade para o primeiro encontro.

A chegada no Catar foi tranquila — ele estava entretido na história de quando Madalena conheceu Gloria Maria em um bar de Paris e derramou Campari no Dior que a apresentadora estava usando. 

Na fila da imigração, Madalena tomou as rédeas: “Que tal um jantar hoje? O restaurante lá do hotel tem uma estrela Michelin”. Alan achou graça da situação, olhou para o chão e disse: “Olha, eu até sou solteiro, mas…”. Madalena entendeu o não-dito. “Não se preocupe, Alan. Tenha uma boa estadia” e seguiu para o guichê. Timing perfeito.

No taxi à caminho do hotel, Alan pegou o celular e ligou para Julia. Esqueceu-se de que era madrugada no Brasil e acordou a quase-namorada: “Oi, o que foi, aconteceu algo?”, perguntou, afoita. “Desculpa, me passei com a questão do fuso”, respondeu. Quase contou a história do sonho. Quase contou da quase ligação furtiva no banheiro do avião. Mas não quis tornar a ligação longa demais. “Quando volto? Na segunda. Passo eu sua casa?”. “Venha, vou cozinhar algo pra gente. E caso a gente não se fale até lá, tenha um lindo voo”.

Ah, esse sim, nota dez.   


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